Para
mim resta pouca dúvida de que a igreja institucional e organizada está
hoje no centro de acirradas discussões em praticamente todos os quartéis
da cristandade, e mesmo fora dela. O surgimento de milhares de
denominações evangélicas, o poderio apostólico de igrejas
neopentecostais, a institucionalização e secularização das denominações
históricas, a profissionalização do ministério pastoral, a busca de
diplomas teológicos reconhecidos pelo estado, a variedade infindável de
métodos de crescimento de igrejas, de sucesso pastoral, os escândalos
ocorridos nas igrejas, a falta de crescimento das igrejas tradicionais, o
fracasso das igrejas emergentes – tudo isto tem levado muitos a se
desencantarem com a igreja institucional e organizada.Alguns
simplesmente abandonaram a igreja e a fé. Mas, outros, querem abandonar
apenas a igreja e manter a fé. Querem ser cristãos, mas sem a igreja.
Muitos
destes estão apenas decepcionados com a igreja institucional e tentam continuar
a ser cristãos sem pertencer ou frequentar nenhuma. Todavia, existem aqueles
que, além de não mais frequentarem a igreja, tomaram esta bandeira e passaram a
defender abertamente o fracasso total da igreja organizada, a necessidade de um
cristianismo sem igreja e a necessidade de sairmos da igreja para podermos
encontrar Deus. Estas idéias vêm sendo veiculadas através de livros, palestras
e da mídia. Viraram um movimento que cresce a cada dia. São os desigrejados.
Muitos livros recentes têm defendido a desigrejação do cristianismo (*).
1) Cristo não deixou qualquer forma de igreja organizada e institucional.
2) Já nos
primeiros séculos os cristãos se afastaram dos ensinos de Jesus,
organizando-se como uma instituição, a Igreja, criando estruturas,
inventando ofícios para substituir os carismas, elaborando hierarquias
para proteger e defender a própria instituição, e de tal maneira se
organizaram que acabaram deixando Deus de fora. Com a influência da
filosofia grega na teologia e a oficialização do cristianismo por
Constantino, a igreja corrompeu-se completamente.
3) Apesar da
Reforma ter se levantado contra esta corrupção, os protestantes e
evangélicos acabaram caindo nos mesmíssimos erros, ao criarem
denominações organizadas, sistemas interligados de hierarquia e
processos de manutenção do sistema, como a disciplina e a exclusão dos
dissidentes, e ao elaborarem confissões de fé, catecismos e declarações
de fé, que engessaram a mensagem de Jesus e impediram o livre pensamento
teológico.
4) A igreja
verdadeira não tem templos, cultos regulares aos domingos, tesouraria,
hierarquia, ofícios, ofertas, dízimos, clero oficial, confissões de fé,
rol de membros, propriedades, escolas, seminários.
5) De acordo
com Jesus, onde estiverem dois ou três que crêem nele, ali está a
igreja, pois Cristo está com eles, conforme prometeu em Mateus 18.
Assim, se dois ou três amigos cristãos se encontrarem no Frans Café numa sexta a noite para falar sobre as lições espirituais do filme O Livro de Eli,
por exemplo, ali é a igreja, não sendo necessário absolutamente mais
nada do tipo ir à igreja no domingo ou pertencer a uma igreja
organizada.
6) A igreja,
como organização humana, tem falhado e caído em muitos erros, pecados e
escândalos, e prestado um desserviço ao Evangelho. Precisamos sair dela
para podermos encontrar a Deus.
Eu concordo
com vários dos pontos defendidos pelos desigrejados. Infelizmente, eles
estão certos quanto ao fato de que muitos evangélicos confundem a igreja
organizada com a igreja de Cristo e têm lutado com unhas e dentes para
defender sua denominação e sua igreja, mesmo quando estas não
representam genuinamente os valores da Igreja de Cristo. Concordo também
que a igreja de Cristo não precisa de templos construídos e nem de todo
o aparato necessário para sua manutenção. Ela, na verdade, subsistiu de
forma vigorosa nos quatro primeiros séculos se reunindo em casas,
cavernas, vales, campos, e até cemitérios. Os templos cristãos só foram
erigidos após a oficialização do Cristianismo por Constantino, no séc.
IV.
Os
desigrejados estão certos ao criticar os sistemas de defesa criados para
perpetuar as estruturas e a hierarquia das igrejas organizadas,
esquecendo-se das pessoas e dando prioridade à organização. Concordo com
eles que não podemos identificar a igreja com cultos organizados,
programações sem fim durante a semana, cargos e funções como
superintendente de Escola Dominical, organizações internas como uniões
de moços, adolescentes, senhoras e homens, e métodos como células,
encontros de casais e de jovens, e por ai vai. E também estou de acordo
com a constatação de que a igreja institucional tem cometido muitos
erros no decorrer de sua longa história.
Dito isto,
pergunto se ainda assim está correto abandonarmos a igreja institucional
e seguirmos um cristianismo em vôo solo. Pergunto ainda se os
desigrejados não estão jogando fora o bebê junto com a água suja da
banheira. Ao final, parece que a revolta deles não é somente contra a
institucionalização da igreja, mas contra qualquer coisa que imponha
limites ou restrições à sua maneira de pensar e de agir. Fico com a
impressão que eles querem se livrar da igreja para poderem ser cristãos
do jeito que entendem, acreditarem no que quiserem – sendo livres
pensadores sem conclusões ou convicções definidas – fazerem o que
quiserem, para poderem experimentar de tudo na vida sem receio de
penalizações e correções. Esse tipo de atitude anti-instituição,
antidisciplina, anti-regras, anti-autoridade, antilimites de todo tipo
se encaixa perfeitamente na mentalidade secular e revolucionária de
nosso tempo, que entra nas igrejas travestida de cristianismo.
É verdade que Jesus não deixou uma igreja institucionalizada aqui neste mundo. Todavia, ele disse algumas coisas sobre a igreja que levaram seus discípulos a se organizarem em comunidades ainda no período apostólico e muito antes de Constantino.
É verdade que Jesus não deixou uma igreja institucionalizada aqui neste mundo. Todavia, ele disse algumas coisas sobre a igreja que levaram seus discípulos a se organizarem em comunidades ainda no período apostólico e muito antes de Constantino.
1) Jesus
disse aos discípulos que sua igreja seria edificada sobre a declaração
de Pedro, que ele era o Cristo, o Filho do Deus vivo (Mt 16.15-19). A
igreja foi fundada sobre esta pedra, que é a verdade sobre a pessoa de
Jesus (cf. 1Pd 2.4-8). O que se desviar desta verdade – a divindade e
exclusividade da pessoa de Cristo – não é igreja cristã. Não admira que
os apóstolos estivessem prontos a rejeitar os livre-pensadores de sua
época, que queriam dar uma outra interpretação à pessoa e obra de Cristo
diferente daquela que eles receberam do próprio Cristo. As igrejas
foram instruídas pelos apóstolos a rejeitar os livre-pensadores como os
gnósticos e judaizantes, e libertinos desobedientes, como os seguidores
de Balaão e os nicolaítas (cf. 2Jo 10; Rm 16.17; 1Co 5.11; 2Ts 3.6;
3.14; Tt 3.10; Jd 4; Ap 2.14; 2.6,15). Fica praticamente impossível nos
mantermos sobre a rocha, Cristo, e sobre a tradição dos apóstolos
registrada nas Escrituras, sem sermos igreja, onde somos ensinados,
corrigidos, admoestados, advertidos, confirmados, e onde os que se
desviam da verdade apostólica são rejeitados.
2) A
declaração de Jesus acima, que a sua igreja se ergue sobre a confissão
acerca de sua Pessoa, nos mostra a ligação estreita, orgânica e
indissolúvel entre ele e sua igreja. Em outro lugar, ele ilustrou esta
relação com a figura da videira e seus galhos (João 15). Esta união foi
muito bem compreendida pelos seus discípulos, que a compararam à relação
entre a cabeça e o corpo (Ef 1.22-23), a relação marido e mulher (Ef
5.22-33) e entre o edifício e a pedra sobre o qual ele se assenta (1Pd
2.4-8). Os desigrejados querem Cristo, mas não querem sua igreja. Querem
o noivo, mas rejeitam sua noiva. Mas, aquilo que Deus ajuntou, não o
separe o homem. Não podemos ter um sem o outro.
3) Jesus
instituiu também o que chamamos de processo disciplinar, quando ensinou
aos seus discípulos de que maneira deveriam proceder no caso de um irmão
que caiu em pecado (Mt 18.15-20). Após repetidas advertências em
particular, o irmão faltoso, porém endurecido, deveria ser excluído da
“igreja” – pois é, Jesus usou o termo – e não deveria mais ser tratado
como parte dela (Mt 18.17). Os apóstolos entenderam isto muito bem, pois
encontramos em suas cartas dezenas de advertências às igrejas que eles
organizaram para que se afastassem e excluíssem os que não quisessem se
arrepender dos seus pecados e que não andassem de acordo com a verdade
apostólica. Um bom exemplo disto é a exclusão do “irmão” imoral da
igreja de Corinto (1Co 5). Não entendo como isto pode ser feito numa
fraternidade informal e livre que se reúne para bebericar café nas
sextas à noite e discutir assuntos culturais, onde não existe a
consciência de pertencemos a um corpo que se guia conforme as regras
estabelecidas por Cristo.
4) Jesus
determinou que seus seguidores fizessem discípulos em todo o mundo, e
que os batizassem e ensinassem a eles tudo o que ele havia mandado (Mt
28.19-20). Os discípulos entenderam isto muito bem. Eles organizaram os
convertidos em igrejas, os quais eram batizados e instruídos no ensino
apostólico. Eles estabeleceram líderes espirituais sobre estas igrejas,
que eram responsáveis por instruir os convertidos, advertir os faltosos e
cuidar dos necessitados (At 6.1-6; At 14.23). Definiram claramente o
perfil destes líderes e suas funções, que iam desde o governo espiritual
das comunidades até a oração pelos enfermos (1Tm 31-13; Tt 1.5-9; Tg
5.14).
5) Não
demorou também para que os cristãos apostólicos elaborassem as primeiras
declarações ou confissões de fé que encontramos (cf. Rm 10.9; 1Jo 4.15;
At 8.36-37; Fp 2.5-11; etc.), que serviam de base para a catequese e
instrução dos novos convertidos, e para examinarem e rejeitarem os
falsos mestres. Veja, por exemplo, João usando uma destas declarações
para repelir livre-pensadores gnósticos das igrejas da Ásia (2Jo 7-10;
1Jo 4.1-3). Ainda no período apostólico já encontramos sinais de que as
igrejas haviam se organizado e estruturado, tendo presbíteros, diáconos,
mestres e guias, uma ordem de viúvas e ainda presbitérios (1Tm 3.1;
5.17,19; Tt 1.5; Fp 1.1; 1Tm 3.8,12; 1Tm 5.9; 1Tm 4.14). O exemplo mais
antigo que temos desta organização é a reunião dos apóstolos e
presbíteros em Jerusalém para tratar de um caso de doutrina – a inclusão
dos gentios na igreja e as condições para que houvesse comunhão com os
judeus convertidos (At 15.1-6). A decisão deste que ficou conhecido como
o “concílio de Jerusalém” foi levada para ser obedecida nas demais
igrejas (At 16.4), mostrando que havia desde cedo uma rede hierárquica
entre as igrejas apostólicas, poucos anos depois de Pentecostes e muitos
anos antes de Constantino.
6) Jesus
também mandou que seus discípulos se reunissem regularmente para comer o
pão e beber o vinho em memória dele (Lc 22.14-20). Os apóstolos
seguiram a ordem, e reuniam-se regularmente para celebrar a Ceia (At
2.42; 20.7; 1Co 10.16). Todavia, dada à natureza da Ceia, cedo
introduziram normas para a participação nela, como fica evidente no caso
da igreja de Corinto (1Co 11.23-34). Não sei direito como os
desigrejados celebram a Ceia, mas deve ser difícil fazer isto sem que
estejamos na companhia de irmãos que partilham da mesma fé e que crêem a
mesma coisa sobre o Senhor.
É curioso
que a passagem predileta dos desigrejados – “onde estiverem dois ou três
reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mt 18.20) – foi
proferida por Jesus no contexto da igreja organizada. Estes dois ou três
que ele menciona são os dois ou três que vão tentar ganhar o irmão
faltoso e reconduzi-lo à comunhão da igreja (Mt 18.16). Ou seja, são os
dois ou três que estão agindo para preservar a pureza da igreja como
corpo, e não dois ou três que se separam dos demais e resolvem fazer sua
própria igrejinha informal ou seguir carreira solo como cristãos.
O meu ponto é
este: que muito antes do período pós-apostólico, da intrusão da
filosofia grega na teologia da Igreja e do decreto de Constantino – os
três marcos que segundo os desigrejados são responsáveis pela corrupção
da igreja institucional – a igreja de Cristo já estava organizada, com
seus ofícios, hierarquia, sistema disciplinar, funcionamento regular,
credos e confissões. A ponto de Paulo se referir a ela como “coluna e
baluarte da verdade” (1Tm 3.15) e o autor de Hebreus repreender os que
deixavam de se congregar com os demais cristãos (Hb 10.25). O livro de
Atos faz diversas menções das “igrejas”, referindo-se a elas como corpos
definidos e organizados nas cidades (cf. At 15.41; 16.5; veja também Rm
16.4,16; 1Co 7.17; 11.16; 14.33; 16.1; etc. – a relação é muito
grande).
No final,
fico com a impressão que os desigrejados, na verdade, não são contra a
igreja organizada meramente porque desejam uma forma mais pura de
Cristianismo, mais próxima da forma original – pois esta forma original
já nasceu organizada e estruturada, nos Evangelhos e no restante do Novo
Testamento. Acho que eles querem mesmo é liberdade para serem cristãos
do jeito deles, acreditar no que quiserem e viver do jeito que acham
correto, sem ter que prestar contas a ninguém. Pertencer a uma igreja
organizada, especialmente àquelas que historicamente são confessionais e
que têm autoridades constituídas, conselhos e concílios, significa
submeter nossas idéias e nossa maneira de viver ao crivo do Evangelho,
conforme entendido pelo Cristianismo histórico. Para muitos, isto é
pedir demais.
Eu não tenho
ilusões quanto ao estado atual da igreja. Ela é imperfeita e continuará
assim enquanto eu for membro dela. A teologia Reformada não deixa
dúvidas quanto ao estado de imperfeição, corrupção, falibilidade e
miséria em que a igreja militante se encontra no presente, enquanto
aguarda a vinda do Senhor Jesus, ocasião em que se tornará igreja
triunfante. Ao mesmo tempo, ensina que não podemos ser cristãos sem ela.
Que apesar de tudo, precisamos uns dos outros, precisamos da pregação
da Palavra, da disciplina e dos sacramentos, da comunhão de irmãos e dos
cultos regulares.
Cristianismo
sem igreja é uma outra religião, a religião individualista dos
livre-pensadores, eternamente em dúvida, incapazes de levar cativos seus
pensamentos à obediência de Cristo.
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