Em linhas gerais, o texto “Em defesa do arminianismo” (publicado na revista
Obreiro Aprovado Ano 36, nº 68) é bom. O autor, o pastor assembleiano Silas
Daniel, acerta ao distinguir entre o calvinismo (denominado no texto de
“compatibilista”) e o hipercalvinismo (que, suponho, seja o que o autor chama
de “calvinismo fatalista”). E ele também acerta ao tratar o primeiro como uma
interpretação cristã legítima, e o segundo como um erro sério que precisa ser
rejeitado. E sugere algumas boas razões para o ressurgimento da fé reformada no
Brasil (prevalência do pelagianismo em muitos púlpitos, críticas caricaturais
ao calvinismo e a superficialidade neopentecostal). Ao fim do artigo, o autor
fala em tons fortes e vigorosos da graça salvífica oferecida pela fé em Cristo,
de forma bíblica. Então, o tom irênico do autor é bom e saudável.
Na tradição
batista onde fui criado (fundamentalista e pietista, com alguma abertura à
teologia liberal), o calvinismo ainda é tolamente tratado por alguns como uma
“heresia perniciosa” (para usar as palavras do autor), muitas vezes assim
rotulado ao lado de G12, “guerra espiritual” e outras esquisitices presentes no
cenário evangélico brasileiro. Então, o tom adotado pelo pastor Silas em seu
ensaio é um avanço importante no debate. E deve-se afirmar claramente, junto
com o autor: o arminianismo não é pelagianismo, apesar desta posição ter
prevalecido e ainda ser a visão religiosa de muito pregadores e mestres
evangélicos no Brasil, que têm como modelo Charles Finney; mas, dependendo de que
autor se lê (já que uma das poucas confissões de fé arminianas representativas
são os “Artigos da religião”, revisados por John Wesley), esta tradição pode
ser considerada semipelagiana ou semiagostiniana (mencionados, mas não
definidos no texto).
Posto isso,
o texto tem vários e sérios problemas, no campo da teologia e da história do
pensamento cristão. Sobre o uso da Escritura, os versículos bíblicos são
tratados como textos-prova. Não há sugestão de exegese ou de estudo léxico das
palavras-chave, ou mesmo referências ao lugar das passagens na teologia
bíblica. Isso fica evidente, por exemplo, na interpretação do autor da
expressão “aos que dantes conheceu” (Rm 8.29), reduzida a mera previsão geral
divina (ao interpretar 1Pe 1.2). Também não são indicados comentários bíblicos
para suplementar as pressuposições do autor. Simplesmente presume-se que os
ensinos arminianos são auto-evidentes nos versículos bíblicos citados. Há muito
tempo atrás fui arminiano, e usei muitos daqueles versículos que o autor citou
para “provar” o arminianismo e atacar o calvinismo. Mas, para cada texto
bíblico citado há uma interpretação, por assim dizer, “calvinista”, que é muito
mais coerente e consistente com o texto bíblico em si, o livro onde este está
inserido e o contexto global da Escritura – e o leitor pode ir aos comentários
de Agostinho, Martinho Lutero e João Calvino, ou aos de D. A. Carson, Douglas
Moo, Donald Guthrie, F. F. Bruce e John Murray, para conferir a exegese das
passagens-chave desta controvérsia.
Pelo menos,
o autor reconhece as várias tensões (e, por que não, as contradições) presentes
na teologia arminiana, como ao tratar da presciência divina e do alcance da
expiação: em outras palavras, o problema posto é: se Deus já sabia quem
receberia a Cristo, por que este precisaria morrer por todos? Ou quando trata
do significado da palavra “mundo”, sem levar em conta o significado da
propiciação realizada por Cristo (ao citar 1Jo 2.2 como texto-prova da expiação
geral). E quando admite algum tipo de predestinação (“sim, ele predetermina
muitas coisas, mas não tudo”) ao mesmo tempo que, ao pressupor que Deus previu
antes de predestinar, não trata de uma pergunta crucial, isto é, quem criou o
que Deus previu?
Também há
vários problemas no campo da teologia histórica. Trato apenas dos principais.
Diferente do que o autor afirma, quase todos os grandes teólogos medievais
criam na predestinação, seguindo em maior ou menor grau o que Agostinho ensinou
no século V: Próspero, Gottschalk, Anselmo, Bernardo, Bradwardine, Tomás de
Kémpis e Tomás de Aquino (cf. S. Th: I, q. 23, a. 1, a. 2, a. 4, a. 7, a. 8;
I-IIae, q. 117, a. 5; II-IIae, q. 174; III, q. 24, a. 1, a. 3). Os
pré-reformadores Jan Hus e John Wycliffe também afirmaram o ensino da
predestinação em moldes agostinianos. Um detalhe que chama a atenção é que
ainda que Agostinho seja citado, sua compreensão sobre a predestinação e a
graça não é oferecida no texto.
O mais
surpreendente é quando o autor afirma que Lutero abrandou a posição afirmada em
seu tratado “Da vontade cativa”, e que passou a crer na possibilidade de se
cair da graça (lendo erroneamente os Artigos de Esmacalde III.42-45, que, na
verdade, refutava distorções anabatistas). Ao tratar de uma mudança de ênfase
na teologia de Lutero, ele cita Herman Bavinck como fonte, mas não mencionou
que este autor também afirmou que Lutero “nunca reverteu sua posição sobre
predestinação”, e que os “verdadeiros luteranos” rejeitaram o sinergismo de
Filipe Melanchthon (“Teologia Sistemática”, v. 2, p. 364).
Obviamente,
há diferenças significativas entre os teólogos cristãos, e mesmo entre teólogos
da tradição reformada. Por isso, um bom ponto de partida para tratar de temas
teológicos controversos é começar com o que afirmam as confissões de fé que
resumem as posições das tradições professadas, e não com as posições de
teólogos, por mais importantes que estes sejam (por exemplo, nem todos os
teólogos reformados ficam satisfeitos com a afirmação da CFW VI.1, de que Deus
determinou permitir o primeiro pecado, mas esta confissão, e não a opinião dos
teólogos, representa a posição reformada/puritana).
Sobre a
participação dos arminianos no Sínodo de Dort – que talvez seja o mais
importante concílio protestante já ocorrido – é necessário deixar claro que
estes não foram vítimas inocentes do poder do Estado ou dos calvinistas, como o
autor parece opinar. Como John de Witt afirmou: “Os arminianos (...) utilizaram
de toda engenhosidade para evitarem qualquer declaração [clara de seus
ensinamentos] (...), exigiram que fosse seguida sua própria pauta de assuntos
em lugar da do Sínodo, praticaram evasivas táticas de retardamento e obstruções
(...) e rejeitaram a autoridade do Sínodo em julgá-los; isto a despeito do fato
de ser legalmente um Sínodo da Igreja em que ocupavam cargos, à qual confessavam
pertencer, e a cuja disciplina estavam obrigados a se submeter em virtude de
suas ordenanças e votos!” (cf. O Sínodo de Dort”, em Jornal Os Puritanos [Ano 3
nº 2, Março/Abril 1995], p. 27-30) E, como o pastor Silas reconhece, “os
seguidores de Arminius na Holanda acabaram, com o passar do tempo, se afastando
progressivamente do pensamento original de seu mentor”, rejeitando doutrinas
como o pecado original, a expiação substitutiva e penal e até mesmo a divindade
de Cristo, tornando-se, como nota o autor corretamente, “liberais em teologia”.
Quando trata
da controvérsia arminiana do século XVIII, o autor (apoiando-se em uma única
fonte secundária) poderia ter colocado toda a polêmica em contexto, o que seria
muito instrutivo para nós, hoje. Em meados de 1740, houve um confronto entre
Wesley e George Whitefield; o primeiro supunha, erroneamente, que a doutrina da
predestinação poderia conduzir ao antinominianismo. Mas a leitura dos escritos
puritanos, por parte de Wesley, conduziu-o a uma reavaliação desta posição e,
com isso, alcançou-se um acordo entre ambos os lados, o que permitiu uma
cooperação na pregação do evangelho, já que nos temas centrais (pecado
original, justificação pela fé e santificação) havia acordo. Mas a contenda
reiniciou-se em meados de 1770, por causa não da doutrina da predestinação, mas
do ensino da justificação – o suíço John Fletcher (Jean de la Fléchère), colega
de John Wesley, começou a negar a doutrina da imputação da justiça de Cristo ao
fiel. Em síntese, ele afirmou que a justificação requereria santificação
pessoal e não a fé somente (cf. “Fourth Check to Antinomianism”). Nesta altura,
Wesley vacilou na defesa desta doutrina importantíssima para a fé evangélica. O
contundente texto de Augustus Toplady, “Arminianismo: o caminho para Roma”, foi
escrito nesta época – e em resposta a uma distorção da doutrina bíblica da
justificação pela graça, recebida mediante a fé somente, com todas as
implicações doutrinais e devocionais daí decorrentes. Richard Watson, talvez o
mais habilidoso teólogo metodista, escreveu no século XIX, sobre Fletcher:
“Embora muito admirado entre os wesleyanos, suas doutrinas não são admitidas
como norma” (cf. Iain H. Murray, “Wesley and Men Who Followed”). E, diferente
da perspectiva do autor, de que “o arminianismo ergueu-se vitorioso” da
controvérsia, os metodistas arminianos saíram da igreja episcopal, que, na
época, ainda era majoritariamente calvinista, para fundar um dos ramos do
metodismo, e do qual se originou os movimentos de santidade (o outro ramo,
seguidor do calvinismo, era o metodismo galês, e se tornou presbiteriano, e não
congregacional, como afirmou o autor).
O estudo da
história do pensamento cristão é muito importante. Mas, no fim, o que irá
decidir toda discussão no âmbito da fé é a Escritura, que é “o juiz supremo,
pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e por quem
serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos
escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o juiz
supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o
Espírito Santo falando na Escritura” (CFW I.10). Portanto, o que conta é o que
a Escritura ensina. Que ela seja estudada por meio de “exegese, exegese e mais
exegese”, sempre em dependência do Espírito Santo. Pois devemos nos apegar
somente e fielmente à Palavra de Deus, revelada nas Escrituras somente.
Via: pagina do Facebook de Franklin Ferreira