Introdução
Em 1618, um sínodo eclesiástico reuniu-se em Dort, na Holanda, para definir os pontos principais da igreja reformada no tocante à doutrina bíblica acerca da salvação. Isso ocorreu devido a certas novidades teológicas, propostas por Jacó Armínio, que estavam tumultuando o contexto reformado e afastando alguns do ensino paulino defendido desde os dias da Reforma Protestante.
Para deixar bem claro e definido o que a igreja reformada cria, ensinava e defendia, oSínodo de Dort fixou cinco pontos que ficaram conhecidos como Os cinco pontos do calvinismo. São eles:
1. Depravação total
2. Eleição incondicional
3. Expiação limitada
4. Graça irresistível
5. Perseverança dos santos
Em inglês, as iniciais dessa lista formam o acróstico “TULIP”, o nome de uma flor (em português, tulipa). Por isso, a figura da tulipa ficou associada à fé calvinista e, de vez em quando, a gente vê imagens dessa flor emsites, artigos e livros que defendem a doutrina reformada.
A Igreja Batista Redenção é calvinista (pelo menos os pastores dela são). Não somos calvinistas no sentido técnico e pleno da palavra (pois não somos aliancistas), mas somos calvinistas na nossa soteriologia, adotando os pontos fixados em Dort. O fato de sermos calvinistas num contexto teológico tão humanista (que exalta o ser humano) e tão reducionista na sua visão de Deus cria certos problemas. Muita gente se opõe aos nossos ensinos, pervertendo-os, alegando que dizemos coisas que nunca dissemos, torcendo o significado de versículos que embasam nossa fé e até negando a validade e a inerrância da Bíblia nas partes que mostram que estamos no caminho certo.
Há, porém, pessoas que são realmente sinceras no seu desejo de conhecer a antiga fé dos reformadores. Muitos, lendo a Bíblia com o coração aberto, ficam impactados com as doutrinas que foram ensinadas não somente por Calvino — mas por Agostinho, Gotescalco, Tomás de Aquino, João Huss, Guilherme de Occam, John Wyclif, Martinho Lutero, Ulrico Zuínglio, John Owen, Jonathan Edwards, George Whitefield, Charles Spurgeon e Abraão Kuyper (para citar somente alguns) — e entram em contato conosco para fazer perguntas sobre a “tulipa”. É com o intuito de ajudar um pouco essas pessoas que escrevo este texto.
Nas seções seguintes, quero expor as cinco tocantes verdades da Tulipa mencionadas pela Helena. Então, como ela, todos poderão entender melhor as maravilhosas dimensões da soteriologia bíblica e, com razões muito mais sólidas, louvar a Deus por sua imensa graça.
A depravação total
Os teólogos dizem que as cinco verdades da Tulipa estão interligadas, de forma que a segunda decorre da primeira; a terceira, decorre da segunda; e assim por diante. Eles estão certos. De fato, os cinco pontos fixados em Dort compõem um sistema unificado e interdependente. Se um ponto for aceito, será muito difícil se livrar dos demais.
É por isso que os oponentes da Tulipa fazem de tudo para desacreditar o primeiro ponto de Dort, A depravação total. De acordo com esse ponto, o pecado afetou a totalidade da natureza humana, cada aspecto dela, não havendo nada que o homem, de si mesmo, consiga fazer para obter o favor divino.
Calvino disse que “todos os homens são concebidos em pecado e nascem como filhos da ira, indispostos a qualquer bem salvífico, com propensão para o mal, mortos no pecado e escravos da iniquidade; e, sem a graça regeneradora do Espírito Santo, eles não querem nem são capazes de se voltar para Deus, de corrigir sua natureza depravada ou mesmo de se disporem a isso”.
A base bíblica para essa doutrina é ampla: Gênesis 6.5; Salmos 51.5; Jeremias 17.9; João 8.43; 15.4,5; Romanos 3.10-18; 1Coríntios 1.18; 2.14; 12.3; 2Coríntios 3.14-16; Efésios 2.1-3; 4.17-18, etc. É por causa desse grau de depravação que o homem depende da iniciativa de Deus para ser salvo (Mt 11.27; Jo 1.13; 6.37,44,65; At 16.14).
Conforme dito, os que se insurgem contra a soteriologia reformada sabem que, se a doutrina da depravação total for acolhida, todo o sistema também terá de ser aceito. Por outro lado, se esse ponto for destruído, todo o edifício da soteriologia reformada ruirá.
No meio evangélico, os maiores inimigos da Tulipa são chamados arminianos, uma designação que vem de Jacó Armínio, teólogo que se insurgiu contra alguns elementos da doutrina ensinada pela igreja reformada da Holanda. No Brasil, o arminianismo não reflete com precisão as ideias de Armínio. Na verdade, a maior parte dos arminianos que conhecemos se define assim somente porque não se simpatiza com a doutrina bíblica da eleição. A maioria deles nunca leu nada sobre Armínio, nem jamais compreendeu a totalidade da sua doutrina. O que fazem é apenas adotar o título “arminiano” de forma intuitiva, como se fosse uma palavra que significa “alguém que não acredita na predestinação”.
Isso torna o arminianismo brasileiro uma espécie de pelagianismo (doutrina que prega a salvação à parte da ação graciosa de Deus), mesclado com ideias liberais (como a negação da inerrância bíblica especialmente nas partes em que a Escritura fala do controle absoluto de Deus sobre todas as coisas), marcado por extremado humanismo (a vontade humana é livre e soberana, capaz de gerar fé salvífica) e por um conceito reducionista de Deus (Deus abriu mão de sua soberania por “respeito” ao homem. Muitos arminianos dizem que Deus também abriu mão de sua presciência!).
Se Armínio soubesse o que hoje pregam em nome dele, certamente se reviraria em seu túmulo. Tendo formação calvinista, ele rejeitava frontalmente o pelagianismo pregado hoje em dia sob a capa do seu nome. Prova disso, é que ele aceitava a primeira verdade da Tulipa, a depravação total. Ele cria, assim, que o ser humano, em si mesmo, é alguém totalmente destituído de qualquer capacidade de buscar a Deus. Armínio escreveu em sua Declaração de sentimentos:
Em seu estado pecaminoso e caído, o homem não é capaz de, e por si mesmo, quer seja pensar, querer ou fazer o que é, de fato, bom; mas é necessário que seja regenerado e renovado em seu intelecto, afeições ou vontade e em todas as suas atribuições, por Deus, em Cristo, através do Espírito Santo, para que seja capaz de corretamente compreender, estimar, considerar, desejar e realizar o que quer que seja verdadeiramente bom.
O problema de Armínio estava na solução que dava para esse problema. Ele propôs um novo conceito da “graça preveniente”, dizendo que, por ela, todo o ser humano (ou toda pessoa que é evangelizada) tem seu livre arbítrio restaurado, podendo então aceitar Cristo por decisão própria, sem a necessidade da graça especial irresistível (quarto ponto da Tulipa). É impossível achar na Bíblia esse conceito de “graça preveniente” ou “graça capacitadora” dada a todo ser humano ou dada a todos que são evangelizados. Aliás, na Bíblia se encontra exatamente o oposto disso, ou seja, Deus endurecendo ainda mais o coração de muitas pessoas para que não creiam (Êx 9.12; Is 6.10; 63.17; Rm 9.18; 11.7 2Ts 2.11).
Bom, em termos práticos quais são os efeitos de se aceitar ou não a doutrina da depravação total? Pessoalmente, eu acredito que isso cause impacto no campo da devoção pessoal, no campo da realização ministerial e no campo da liturgia. Eu explico: no campo da devoção pessoal, o crente que entende a doutrina da depravação total se torna mais humilde e grato por sua salvação, entendendo melhor o quanto Deus foi gracioso com ele. Ele será incapaz de se orgulhar por ter “aceitado a Cristo”, sabendo que era incapaz de qualquer coisa e que, se um dia creu, isso foi graças ao grande poder e graça do Salvador.
No campo da realização ministerial, o ministro terá descanso. Ele saberá que as conversões não dependem de sua retórica ou talento e, por isso, não cansará as pessoas com apelos infindáveis para que “tomem uma decisão”. Também não se orgulhará quando conduzir pessoas a Cristo. Antes, saberá que todos os frutos que vê em seu ministério são obra de Deus e que, considerando a depravação do homem, ninguém daria atenção às suas pregações se o Senhor não atuasse de modo poderoso nos ouvintes.
Finalmente, no campo litúrgico, a igreja que entender a doutrina da depravação total não investirá em projetos de “multiplicação” adotando estratégias de marketing barato (festas, diversão, atrações artísticas) para “conquistar almas”, fazendo de tudo para convencê-las a usar o “livre-arbítrio” e crer. Antes, dará mais valor à pregação e à súplica, sabendo que só pelo poder de Deus a dureza humana pode ser rompida.
A eleição incondicional
Conforme dito anteriormente, as cinco verdades da Tulipa estão interligadas de forma que, se você rejeitar a primeira, terá de rejeitar a segunda, e assim por diante. Pois bem, até o século 18, seria muito difícil encontrar um protestante que negasse o primeiro ponto da fé reformada, ou seja, a depravação total. Todos os reformadores tinham ensinado que o pecado havia afetado gravemente cada faculdade humana e os crentes viam isso claramente nas Escrituras. Consequentemente, a grande maioria dos crentes desde a época da Reforma (século 16) também aceitava a eleição incondicional, pois, se o homem era incapaz de se mover na direção de Deus, então a única saída era Deus tomar a iniciativa e se mover na direção do homem, quebrando seu coração endurecido. Por que Deus fazia isso somente com alguns e não com todos? A resposta estava mais uma vez na Bíblia: Deus tinha seus eleitos!
Ocorreu, porém, que os avanços científicos e tecnológicos dos séculos 18 e 19 criaram um ambiente intensamente otimista em relação ao homem e também fortemente cético em relação aos dogmas da Bíblia. Nesse contexto, várias doutrinas consagradas da fé cristã foram negadas — inclusive por pastores e teólogos (os chamados teólogos liberais). Entre essas, uma que foi totalmente repudiada foi a doutrina do pecado original, a qual destacava a realidade da depravação total. Rejeitando essa doutrina, as igrejas passaram a ver o pecador como alguém capaz de tudo, inclusive de, por si mesmo, produzir a fé salvífica no próprio coração, bastando apenas que decidisse fazê-lo. É claro que, rejeitando a depravação total, os crentes, a partir de então, rejeitaram também a doutrina da eleição, ou a reinterpretaram de forma que preservassem seu conceito positivo do homem.
A partir daí, muitas pessoas viram nas ideias de Armínio uma opção atraente. Seu conceito de um livre-arbítrio resgatado pela “graça preveniente” e suas ideias de uma eleição baseada naquilo que Deus antevê no homem se encaixavam melhor dentro do ambiente humanista que passou a reinar.
É por causa de todo esse processo iniciado no século 18 — um processo racionalista/humanista — que grande parte das igrejas evangélicas de hoje é liberal ou arminiana. Aliás, muitos liberais são também arminianos (são os arminianos da mente, em contraste com os arminianos do coração), dizendo que o homem tem as faculdades livres (ênfase arminiana) e negando a depravação total como uma ideia decorrente do “mito” da Queda (ênfase liberal).
Conforme já foi destacado, sem a doutrina da depravação total, a verdade da eleição incondicional cai por terra. No modelo arminiano, o homem, tendo as faculdades livres dos efeitos do pecado pela ação da “graça preveniente”, é capaz de ele próprio eleger Deus. No fim das contas, a eleição deixa de ser um ato divino em favor do homem e passa a ser um ato humano em favor de Deus! Sem a doutrina da depravação total nasce a doutrina da inversão total!
A verdade, porém, é que não existe nenhuma graça preveniente livrando todas as pessoas das limitações impostas pelo pecado, como Armínio acreditava. O coração humano permanece corrupto e está morto para as coisas de Deus, sendo incapaz de buscá-lo, amá-lo ou desejá-lo. Para que isso mude, é necessária a ação sobrenatural da graça de Deus. E essa graça não atua sobre todos como pensam os arminianos. Atua somente nos eleitos. Estes foram escolhidos sem que Deus visse neles mérito algum (por isso, a eleição é chamada “incondicional”), tudo com base apenas na “determinação e graça” (2Tm 1.9) “daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11).
Essa doutrina tem um vasto fundamento bíblico. Jesus afirmou que tinha um povo disperso que lhe pertencia e que ele reuniria esse povo, chamando cada integrante dele pelo nome (Mt 24.31; Jo 10.3,16; Jo 11.51-52). Ele disse ainda que esses escolhidos eram poucos (Mt 22.14), mas que eles seriam preservados e protegidos do engano (Mt 24.22,24) e que Deus um dia faria justiça a eles (Lc 18.7).
O livro de Atos também fala sobre os eleitos dizendo que Deus tinha pessoas que lhe pertenciam nas cidades gentílicas e que essas pessoas ouviriam a pregação dos apóstolos (At 18.9-10). Em Atos é dito ainda que os que criam no evangelho eram pessoas que tinham sido destinadas para a vida eterna (At 13.48).
Paulo é quem mais escreve sobre a doutrina da eleição (Rm 8.29-30; Ef 1.4-5,11), dizendo que essa doutrina realça a soberania de um Deus que tem autoridade de fazer o que quiser com quem quiser (Rm 9.14-18), não tendo o homem o direito de questionar suas ações (Rm 9.19-21). Paulo diz ainda que é graças à eleição que Deus preserva um remanescente fiel a ele (Rm 11.1-5) e que esses escolhidos não podem ser alvos de nenhuma acusação (Rm 8.33). Segundo o apóstolo, a fé salvadora pertence somente aos eleitos (1Ts 1.4-6; Tt 1.1), sendo certo que Deus incluiu no número de escolhidos muitas pessoas simples a fim de humilhar a ilusória grandeza do mundo e ninguém se gloriar diante dele (1Co 1.27-29. Ver tb. Tg 2.5).
Todas essas evidências tornam inegável a eleição de Deus e os crentes não devem se insurgir contra ela, como faz a corrompida igreja atual. Em vez disso, o cristão deve se curvar em gratidão, sabendo que foi salvo não por ter percepções espirituais melhores, mas porque Deus, sem ver nele atrativo algum, o escolheu soberanamente.
Muitos arminianos tentam se livrar da doutrina da eleição incondicional, afirmando a eleição condicional. Eles dizem que a eleição é uma realidade bíblica, mas que está condicionada à previsão da fé. Trocando em miúdos: Deus elegeu sim, mas ele fez isso porque previu de antemão a fé de alguns. Essa ideia tenta buscar fundamentos na expressão “os que de antemão conheceu”, presente em Romanos 8.29. Essa frase, porém, não significa “aqueles em quem Deus anteviu a fé”, mas sim “aqueles a quem Deus decidiu de antemão mostrar seu favor” (veja o mesmo sentido em Rm 11.2). Note ainda que, de acordo com 1Pedro 1.20, conhecer de antemão não é somente saber o que vai acontecer, mas sim saber o que foi decretado que vai acontecer.
Outro texto que os arminianos usam na defesa da eleição condicional é 1Pedro 1.2, que diz que os crentes foram eleitos “segundo a presciência de Deus”. Contudo, a preposição grega usada nesse versículo (katá) não permite o entendimento de que as pessoas foram eleitas por causa da presciência de Deus, mas sim que Deus, de conformidade com sua presciência, sabia desde o início a quem iria salvar.
Tudo isso realça o antigo princípio paulino de que a eleição teve como causa “aquele que chama” (Rm 9.11) e não aqueles que são chamados, destacando fortemente que o decreto eletivo do Senhor se fundamentou unicamente no “beneplácito de sua vontade” (Ef 1.5,11) e não em virtudes que porventura tenha antevisto em alguns. Isso também destaca a gratuidade completa da eleição, pois mostra que ela não foi uma retribuição pelo bem que Deus supostamente viu de antemão no eleito (o que ele, de fato, anteviu no eleito foi somente pecado e morte) e sim um ato de graça pura, verdadeiro favor imerecido.
A expiação limitada
A verdade da eleição incondicional conduz forçosamente à terceira “pétala” da Tulipa: A expiação limitada. A pergunta central ligada a esse ponto é a seguinte: se Deus tem seus eleitos, por quem então Cristo morreu? A resposta rápida e certeira é: pelos eleitos, é claro! No entanto, mesmo sendo isso tão óbvio, a terceira verdade da flor é a que mais tem causado divisões e conflitos até mesmo entre os teólogos reformados. Entre estes há muitos que afirmam a expiação ilimitada, posição também conhecida como universalismo hipotético. De acordo com essa concepção, Cristo morreu em benefício e em lugar de todos os indivíduos, mas sua morte só tem eficácia para os eleitos.
Os universalistas hipotéticos (ou calvinistas de quatro pontos) ensinam que Deus decretou que a expiação de Cristo fosse feita em favor de cada ser humano independente de crerem ou não, mas visto que ninguém tinha capacidade de crer (depravação total), Deus escolheu aqueles que iria salvar (eleição incondicional). Assim, a expiação permanece eficiente e suficiente para todos, mas eficaz somente para os eleitos.
O universalismo hipotético ganhou destaque graças ao trabalho de Moisés Amyraut (1596-1664), da Academia de Saumur, na França. Por isso, essa posição teológica é também chamada de amiraldismo ouamiraldianismo.
Ainda que pareça atraente à primeira vista, o calvinismo de quatro pontos esbarra em diversos problemas. Em primeiro lugar, o próprio Jesus disse que daria a sua vida “pelas ovelhas” (Jo 10.11,15). Disse ainda que muitas dessas ovelhas por quem ele morreria estavam espalhadas fora do aprisco de Israel, mas que elas afinal creriam nele e ele as agregaria (Jo 10.16). Depois, voltou-se para os judeus que o afrontavam e disse: “Vós não sois das minhas ovelhas”, excluindo-os desse grupo por quem ele morreria e um dia chamaria para si (Jo 10.26).
Jesus também disse que daria a sua vida em resgate de muitos (Mc 10.45) e, ao instituir a Ceia, repetiu essa verdade, declarando que o sangue da Nova Aliança seria derramado em favor de muitos, limitando o alvo de sua obra (Mt 26.28).
João, em seu evangelho, ao fazer alusão ao objetivo da morte de Cristo, disse que ele morreria para reunir “os filhos de Deus que andam dispersos” (Jo 11.51-52), ou seja, pelo bem de um grupo específico que estava espalhado pelo mundo e que ainda não tinha sido alcançado (Tt 2.14).
Paulo, por sua vez, quando falou aos presbíteros de Éfeso, disse que o sangue de Cristo serviu para comprara igreja (At 20.28). Quando mais tarde escreveu à mesma igreja de Éfeso, o apóstolo realçou novamente que Cristo se entregou pela igreja (Ef 5.25). O Apocalipse aponta na mesma direção, dizendo que por sua morte Cristo não comprou todo mundo, mas sim certas pessoas espalhadas pelo mundo todo (Ap 5.9).
Outra questão que deve ser levada em conta é que a morte de Cristo teve um efeito retroativo, beneficiando pessoas do Antigo Testamento (AT), ou seja, indivíduos que já haviam morrido, como Abraão, Moisés e Davi, por exemplo (Rm 3.25; Hb 9.15). Assim, se Cristo morreu em lugar de cada ser humano, então ele morreu inclusive por pessoas do AT que já estavam no inferno — gente como Faraó, Jezabel e os inimigos de Daniel. Ora, que sentido haveria em Cristo dar a sua vida pelos pecados de pessoas irremediavelmente perdidas? Morrer pagando pela redenção do profeta Isaías faz sentido, mas morrer em favor dos homens de Sodoma teria algum propósito?
A doutrina da expiação limitada também tem de lidar com certas dificuldades oriundas de algumas passagens bíblicas. Por isso, na próxima seção, vamos dedicar umas poucas linhas para resolver essas questões.
Dificuldades
Os arminianos e os calvinistas de quatro pontos dizem que a doutrina da expiação limitada esbarra em textos bíblicos que dizem que Cristo morreu por todos ou pelo mundo inteiro. Alguns exemplos desses textos (com breves explicações calvinistas) são os seguintes:
2Coríntios 5.15 — Esse versículo diz que Cristo “morreu por todos”, sendo essa a base para o desafio de viver para ele. Os universalistas hipotéticos entendem que aqui a palavra “todos” se aplica a cada ser humano. No entanto, uma leitura mais ampla e atenta revelará que nesse texto o vocábulo “todos” se refere a todos os crentes. Essa palavra aparece também no v.14 (“todos morreram”), onde esse é o único sentido possível.
1Timóteo 2.6 — Nessa passagem, há o registro da frase que diz que Cristo se entregou “como resgate por todos”. Mais uma vez, os oponentes da teologia reformada entendem que aqui é ensinada a expiação ilimitada. Contudo, nessa passagem a palavra “todos” se refere a todos os tipos de pessoas — servos e senhores, ricos e pobres, judeus e gentios, etc. (veja os vv.1-2, onde somente esse sentido é possível).
De fato, a análise do contexto histórico dessa passagem mostra que Paulo estava muito preocupado em quebrar a ideia proposta pelo gnosticismo incipiente da época de que somente uma elite de homens tinha privilégios espirituais (1Tm 1.3-7). Daí sua afirmação de que Cristo morreu por todos os tipos de pessoas, anulando as distinções ensinadas pelos hereges (veja tb. Tt 2.11, onde o sentido é o mesmo. Aliás, logo a seguir, nessa passagem, o v.14 mostra o alvo limitado da expiação).
Hebreus 2.9 — Esse texto afirma que Jesus provou a morte “em favor de todos”. Será que isso comprova a doutrina da expiação ilimitada? É claro que não. Aqui a palavra “todos” se refere a judeus e gentios. Deve ser lembrado que a carta em questão foi escrita para cristãos judeus. Ora, no século 1 havia entre esses crentes a tendência a crer que somente pessoas da nação israelita seriam beneficiadas pela obra do Messias. Os cristãos hebreus não assimilaram de pronto a ideia de que o Cristo tinha vindo em benefício de todos os povos. Por isso, era necessária a afirmação de que o Messias havia morrido por todos (judeus e gentios), no afã de enfraquecer a noção de exclusivismo soteriológico israelita.
Ademais, nesse ponto é preciso lembrar que, na Bíblia, nem sempre é possível que a expressão “todo homem” e similares signifique cada indivíduo que vive no mundo. Veja, por exemplo, João 12.32, 1Coríntios 15.22 eColossenses 1.28. Em todas essas passagens, as expressões “todos” e “todo homem” têm um sentido limitado. Isso é muito óbvio!
2Pedro 3.9 — Segundo os arminianos, esse versículo ensina que Deus não quer que ninguém pereça. Logo, dizem, não existe eleição incondicional e Cristo só pode ter morrido por todos. No entanto, nessa passagem, Pedro fala do anseio do Senhor em relação aos crentes e não em relação a todos os seres humanos (observe o uso de “convosco”). Ocorre que, naqueles dias, os cristãos estavam se deixando influenciar pelo ensino de falsos mestres (ver 2Pe 2.1-22; 3.16) e isso os levaria a sofrer algum tipo de dano, caso fossem surpreendidos nessa condição por ocasião da vinda do Senhor (1Co 3.13-15; 1Jo 2.28). Por isso, Pedro alerta os cristãos, dizendo que o Senhor tardava sua vinda a fim de que eles se arrependessem, pois não queria que nenhum deles provasse qualquer tipo de castigo paterno (3.14). Aliás, é bom destacar que o termo usado por Pedro e traduzido como “pereça” (ARA) é apóllymi, que não implica necessariamente perdição eterna, mas qualquer forma de ruína, perda, dano ou prejuízo (veja Rm 14.15).
Além desses textos, existem aqueles que pertencem aos escritos joaninos (Evangelho de João; 1,2,3 João e Apocalipse). Nesses livros, os versículos mais citados contra a expiação limitada são João 3.16 e 1João 2.2. Os arminianos e os calvinistas de quatro pontos entendem que, nesses dois trechos, a palavra “mundo” significa cada ser humano que há na Terra e acreditam, com isso, derrubar a terceira pétala da Tulipa.
Contudo, nos escritos joaninos há vários textos que provam que o vocábulo “mundo” nem sempre (talvez nunca) pode significar cada indivíduo do planeta. Veja, por exemplo João 1.29; 6.33 e 16.8. Se nesses trechos o termo “mundo” abranger cada pessoa, então cairemos no universalismo, afirmando que todos os homens estão salvos, o que é um grande desvio doutrinário. Considere ainda 1João 5.19. Note que nessa passagem, o termo “mundo inteiro” está restrito em sua aplicação apenas aos incrédulos, sendo excluídos os salvos.
Como, então, deve ser interpretada a palavra “mundo” em João 3.16 e 1João 2.2? Nos escritos joaninos só existe um versículo que revela como o termo “mundo” deve ser entendido em textos como esses. Trata-se deApocalipse 5.9. Esse é o único texto que mostra o que João tinha em mente quando dizia que Deus amou o mundo ou que Cristo é a propiciação pelos pecados do mundo. De fato, Apocalipse 5.9 indica que quando João falava assim, ele não pensava em cada indivíduo que vive aqui, mas sim em homens espalhados por “toda tribo, povo, língua e nação”.
Assim, quando a boa teologia afirma que Cristo se entregou pelo mundo, isso significa que ele morreu por homens que vivem no mundo todo e não por todos os homens que vivem no mundo. Percebeu a diferença? Foi por isso que Jesus disse que derramou o seu sangue em favor de “muitos” (e não todos — Mc 10.45; 14.24).
A graça irresistível
De todas as pétalas da Tulipa, essa é a que eu acho a mais notável e bonita. Trata-se do ponto da teologia reformada que mais mexe com a nossa memória, fazendo-nos lembrar daquele dia maravilhoso em que o Senhor nos chamou doce e mansamente pelo nosso próprio nome e, rompendo a dureza do nosso coração, nos atraiu para si (Jo 10.2-3).
Mesmo, porém, envolvendo realidades tão ricas e belas, a quarta pétala da nossa flor não fica livre dos ataques da teologia humanista que reina no meio evangélico. Por isso, antes de tudo, é preciso destacar o que a graça irresistível não é.
Em primeiro lugar, a graça irresistível não é uma violência contra a personalidade ou, mais especificamente, contra a vontade humana (já vi arminianos dizendo que a doutrina da graça irresistível ensina uma forma de estupro espiritual)! Outros dizem que ela transforma os salvos em marionetes. Para mim, essas afirmações beiram a blasfêmia). É claro que Deus não tem obrigação nenhuma de “respeitar” a vontade humana e ele, muitas vezes sendo o Senhor soberano, a “atropela” (os arminianos usam esse termo para criticar os calvinistas), sem que isso em nada diminua ou detrate a grandeza de seu caráter (veja, por exemplo, a história de Jonas, em que a vontade do profeta de ir para Társis foi “atropelada” por Deus. Veja tb. Is 43.13 e Dn 4.35).
Na maior parte das vezes, porém, não é assim que age a graça irresistível. Essa graça, constantemente, atua por meio do convencimento lento e paciente, algo que se processa frequentemente ao longo de anos — anos em que o Senhor busca o seu eleito em diferentes ocasiões, fala com ele aos poucos (por muitas e variadas formas), trabalha lentamente em seu coração e o persuade, enfim, a segui-lo.
Obviamente, há casos em que Deus age com vigor maior (veja como foi com Paulo, em At 9.3-5), mas mesmo nessas ocasiões, o Senhor atua na vontade humana, fazendo com que a pessoa creia nele e queirasegui-lo. O fato é que ninguém se torna discípulo de Jesus “pela orelha”. Todas as suas ovelhas quiseram e querem segui-lo. A questão não é essa. A questão é como, estando espiritualmente mortas (depravação total), essas pessoas desejaram um dia segui-lo. E a resposta é simples: a graça irresistível de Deus atuou nelas.
Em segundo lugar, a graça irresistível não é do tipo que nunca é resistida. Já vi arminianos dizerem absurdos do tipo: “Eu não creio na doutrina da graça irresistível porque eu mesmo resisti muito tempo antes de crer”. A pessoa que diz isso prova o que todos os calvinistas já sabem sobre o arminianismo moderno: é um modelo que critica o calvinismo sem saber o que ele ensina. Na verdade, a teologia reformada jamais negou que a graça salvadora de Deus pode ser resistida. O que o modelo reformado diz é que essa graça não pode ser resistida para sempre. Veja o exemplo de Paulo. O Senhor lhe disse: “Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões” (At 26.14). Essa frase talvez indique que Paulo estava sendo incomodado por Jesus já havia algum tempo, mas se recusava a se curvar. No fim, porém, o Senhor o derrubou (literalmente!) e a graça se mostrou então não somente salvadora, mas também vencedora.
Outras histórias além da de Paulo provam que a graça irresistível pode ser resistida por algum tempo, mas sai vitoriosa ao final, convencendo, humilhando, quebrantando e fazendo o indivíduo desejar o Salvador. Entre essas histórias, talvez o leitor possa acrescentar a sua própria, lembrando a forma especial, amorosa e paciente com que o Senhor, talvez ao longo de um lento processo, o buscou e o convenceu a segui-lo de todo o coração.
Tendo mostrado um pouco do que a graça irresistível não é, vamos agora ver o que ela é. Essa graça, quando em operação, é também denominada “chamado eficaz”, pois trata-se de uma vocação divina para a fé que, conforme vimos, no fim sempre sai vitoriosa. O chamado eficaz é diferente do chamado geral. Este é dirigido a todos os que ouvem o evangelho, enquanto aquele só é dirigido aos eleitos.
Por exemplo: veja o caso de Lídia, em Atos 16.13-14. Enquanto escutavam a pregação dos apóstolos, todas as mulheres ali ouviram o chamado geral (o convite dos pregadores a crer no evangelho), mas somente Lídia ouviu o chamado eficaz (o Senhor lhe abriu o coração). Note a diferença: o primeiro chamado (o geral) alcançou todas; já o segundo (o chamado eficaz) só alcançou Lídia. Outro exemplo pode ser visto em Atos 13.46-48. Esse texto mostra que Paulo e Barnabé começaram a pregar para todos os gentios (chamado geral), mas creram somente os que haviam sido designados para a vida eterna (graça especial ou chamado eficaz). Foi por causa dessas realidades que Jesus disse em Mateus 22.14 que muitos são chamados (ouvindo o convite geral do evangelho), mas poucos são escolhidos (para atender o chamado de Deus). Esses “escolhidos” são aqueles que a eleição divina separou, de maneira que Deus atua neles de forma especial, conduzindo-os à fé.
Outros textos bíblicos que falam da graça irresistível são os seguintes:
João 6.37 — Nessa passagem, Jesus diz que aqueles que o Pai lhe dá irão até ele. Isso mostra que só podem ir a Cristo as pessoas que são sobrenaturalmente dirigidas pelo Pai. Ninguém pode ir por si mesmo, sem que Deus o capacite (veja os vv. 44 e 65). É a essa condução e capacitação de Deus que chamamos de graça irresistível.
João 10.16 — Esse versículo mostra que Jesus tem seus escolhidos espalhados pelo mundo e que, no tempo devido, ele os chama individualmente (veja os vv.2-3). Quando isso acontece, essas pessoas ouvem a sua voz e o seguem numa nova vida de comunhão e conhecimento de Deus (veja Mt 11.27).
Romanos 8.30 — Aqui Paulo diz que aqueles que Deus predestinou, a estes também chamou, justificando-os a seguir. Obviamente, trata-se de um chamado especial, dirigido somente aos que Deus predestinou. O chamado de que se trata nessa passagem é eficaz, pois é seguido pela justificação.
1Coríntios 1.26-29 — É clara aqui a alusão que Paulo faz à vocação especial de Deus. Ele estimula os coríntios a aprender algo sobre essa vocação observando os crentes em geral (os que “Deus escolheu”, vv.27-28). Ele afirma que Deus chamou de forma eficaz um número grande de “fracos”. Em contrapartida, essa chamada eficaz atuou num número pequeno de “poderosos”. O apóstolo ensina que a vocação salvífica foi administrada dessa forma para que a sabedoria do mundo fosse humilhada e ninguém se orgulhasse achando que foi salvo por algum mérito pessoal (veja Mt 11.25-26).
A doutrina da graça irresistível torna a flor reformada ainda mais linda, gerando humildade e gratidão no homem salvo, pois este saberá que creu não por ser mais inteligente ou apto, mas porque Deus agiu de modo sobrenatural em seu coração. E mais do que isso: essa doutrina remove também do “ganhador de almas” toda a base para o orgulho, mostrando a ele que, caso tenha algum sucesso em sua obra evangelística, isso será fruto da graça irresistível e do chamado eficaz de Deus, nunca dos seus talentos ou habilidades pessoais. Assim, o evangelista reformado dirá como Paulo: “Eu plantei, Apolo regou; mas Deus deu o crescimento. Por isso, nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento” (1Co 3.6-7).
A perseverança dos santos
Chegamos ao último ponto da soteriologia reformada. Aqui, os oponentes do calvinismo se dividem. Muitos (especialmente entre os batistas) rejeitam os demais pontos, mas adotam esse. Outros rejeitam esse também (por exemplo, os assembleianos), dizendo que o crente tem de tomar muito cuidado para não perder a salvação. No cômputo geral, porém, a maioria dos arminianos acredita que o crente pode sim perder a condição de filho de Deus e herdeiro do céu.
Armínio nunca foi contra a doutrina da perseverança dos santos. Na verdade, ele disse apenas que acerca desse assunto era necessária uma reflexão maior. Assim, os que negam essa doutrina são os arminianos posteriores, que tendem muito mais a centralizar no homem a responsabilidade por sua salvação.
A doutrina da perseverança dos santos é também chamada de doutrina da “preservação” dos santos e afirma que aqueles a quem Deus escolheu desde a eternidade e chamou de forma irresistível, ele também guarda da queda absoluta, sendo impossível que percam a salvação. Trata-se de um ensino que realça a segurança eterna dos salvos e fornece o fundamento teológico para a famosa fórmula: “Uma vez salvo, salvo para sempre”.
As bases bíblicas para a doutrina da perseverança dos santos são as seguintes:
João 6.39 — Essa passagem afirma que a vontade do Pai é que Jesus não perca nenhuma pessoa que ele lhe entregou. Jesus garante que realizará essa vontade, ressuscitando no último dia todos aqueles que o Pai lhe deu e que, assim, creram nele (veja tb. o vv.40 e 44).
João 10.27-29 — Nesse texto, Jesus afirma que dá a vida eterna às suas ovelhas e que elas não podem perecer. Ele diz ainda que suas ovelhas estão em suas mãos e nas mãos do Pai, sendo que nada pode arrebatá-las dessas mãos.
Romanos 8.29-30,33-35,38-39 — Esses versículos indicam que aqueles que Deus predestinou serão fatalmente glorificados. Também destacam que os eleitos do Senhor estão acima de qualquer acusação e que absolutamente nada no universo visível e invisível pode separar essas pessoas do amor de Deus.
1Coríntios 3.15 — Esse texto ensina que, no dia do Tribunal de Cristo, até mesmo os crentes que o serviram mal serão salvos, deixando apenas de receber galardão.
1Coríntios 5.1-5 — Aqui Paulo fala de um crente que fornicava com a mulher do seu próprio pai. O apóstolo diz que esse homem devia ser expulso da igreja e afirma que, mesmo assim, ele seria salvo no dia do Senhor.
Efésios 1.13-14 — Nessa passagem, Paulo fala que os crentes foram selados com o Espírito Santo da promessa e que esse selo é a garantia da sua herança até o dia da redenção (Ef 4.30).
1Coríntios 1.7-8, Filipenses 1.6, 1Tessalonicenses 5.23-24, 1Pedro 1.5; 5.10 e Judas 24-25 — Todos esses textos ensinam que é o próprio Deus quem firma o crente e o preserva em fidelidade até o último dia, sendo a perseverança dos santos uma obra dele operada em seus eleitos.
Mesmo diante de textos tão claros, os arminianos atacam ferozmente a doutrina da segurança eterna dos salvos. Geralmente, eles fazem isso alegando que esse ensino estimula o pecado e a lassidão espiritual. Segundo os arminianos, o crente que acreditar que a salvação não pode ser perdida, não terá temor de Deus e viverá fazendo o que bem entende, sob a falsa segurança de que, de um modo ou de outro, irá para o céu.
Essas alegações, porém, decorrem da ideia nutrida pelos arminianos de que a fé salvadora é uma mera reação humana ao evangelho. Sabe-se, contudo, que, conforme já visto, a fé que salva é uma obra sobrenatural na vida daqueles que Deus escolheu. Essa fé sobrenatural é poderosamente transformadora e santificadora, sendo impossível que aquele que a tem viva continuamente no pecado, se revolvendo alegre na podridão deste mundo (1Jo 2.4,19). Decididamente, os que atacam a doutrina da perseverança dos santos com essas alegações não compreenderam o caráter transformador e renovador da fé salvífica (1Jo 5.4-5).
Os inimigos da preservação eterna dos santos também tentam basear suas ideias em alguns textos bíblicos. Na próxima seção, vamos analisar brevemente esses textos.
Dificuldades
Num cenário evangélico dominado por uma forma de arminianismo rasa e ingênua, é natural que existam ataques à doutrina da preservação dos santos. Muitas vezes, esses ataques buscam fundamento em textos bíblicos. A seguir são alistados alguns desses textos, com breves comentários que mostram quão distantes estão de ensinar a perda da salvação.
Mateus 10.22; 24.13 (em paralelo com Ap 2.26) — Esses versículos dizem que “quem perseverar até o fim será salvo”. Isso faz com que alguns entendam que a salvação é pela fé somada à firmeza e afirmam que crer em Cristo não basta, sendo preciso também ficar firme em meio às provas. Contudo, o próprio Mestre disse que é impossível que os escolhidos abdiquem de sua fé, mesmo nos tempos mais difíceis (Mt 24.24). Portanto, o que esses versículos realmente significam é que existe uma fé falsa que, não tendo origem divina, é sem resistência e cedo desaparece, tão logo surjam as provas. Na Parábola do semeador, Jesus falou dessa fé ilusória e passageira e a contrastou com a fé real e perene dos crentes (Mt 13.1-23). Assim, quando Jesus disse que quem perseverar até o fim será salvo, seu objetivo não era ensinar a perda da salvação ou a salvação pela fé somada à perseverança. Antes, seu propósito era declarar que os crentes verdadeiros são aqueles cuja fé é do tipo que perdura, haja o que houver (Hb 3.14). Os que não têm essa fé durável não serão salvos, pois uma fé assim não é a fé salvadora que Deus concede aos seus eleitos.
Romanos 11.17-22 — Nesse texto, Paulo usa uma analogia, dizendo que os crentes são ramos que foram enxertados na “oliveira” de Deus. Então, ele adverte esses “ramos” acerca do perigo de serem cortados. Muitos entendem que aqui Paulo alerta sobre o risco de alguém perder a salvação. Na analogia de Paulo, porém, ser parte da oliveira não significa unicamente ser salvo. Note-se que quando ele fala dos ramos naturais que foram cortados (v.17), não se refere a judeus que tinham sido salvos e que depois caíram dessa posição. Antes, fala de judeus que desfrutavam das bênçãos dirigidas a Israel, mas que nunca tinham experimentado o novo nascimento. Isso também podia acontecer com alguns gentios ligados à igreja de Roma. Eles podiam se beneficiar das bênçãos do evangelho e depois serem cortados do desfrute dessa “seiva” por não terem uma fé perseverante. Na verdade, isso é muito comum de se ver nas igrejas.
Gálatas 5.4 — Nessa passagem, o desligar-se de Cristo e o cair da graça podem dar a entender que isso se aplica a pessoas que estavam ligadas a Cristo e firmadas na graça, tendo depois perdido essa condição. No entanto, essa passagem se dirige a pessoas que procuravam “ser justificadas pela Lei”, ou seja, a incrédulos judaizantes infiltrados nas igrejas da Galácia — pessoas a quem Paulo chama de “falsos irmãos” (2.4). Os termos usados nesse texto mostram que essas pessoas, na busca da justificação pelas obras, haviam se afastado de Cristo e se autoexilado longe dos domínios da graça.
Hebreus 6.4-8 — Ao contrário do que os arminianos dizem, esse texto não fala de crentes, mas sim de incrédulos que durante um longo tempo se envolveram com as coisas do Reino, participando de suas bênçãos e testemunhando seu poder, mas que, depois disso tudo, produziram somente coisas más. A ilustração dosvv.7-8 mostra que o texto fala de pessoas sobre quem a “chuva” do Espírito caiu “frequentemente” e que, mesmo assim, produziram “espinhos e ervas daninhas”. Trata-se, portanto, aqui, de um incrédulo diferente, que ouviu, provou e testemunhou por anos a fio o poder do Espírito Santo, virando-lhe, afinal, as costas e mergulhando no mal. O v.6 diz que é “impossível” que esse tipo de incrédulo seja restaurado — algo que não se aplica no caso de desvio de crentes, conforme mostram a Bíblia e a experiência comum.
Hebreus 10.26-31 — Muitos entendem que a palavra "fogo" presente nesse texto se refere ao inferno e à perdição eterna que pode alcançar crentes que pecam deliberadamente. No entanto, a palavra fogo deve ser entendida aqui como um castigo presente, aplicado neste mundo. O v.28 mostra que é esse tipo de castigo que o autor tem em mente. Veja esse sentido também em 1Pedro 4.12.
Os inimigos da doutrina da perseverança dos santos não devem apenas rever a hermenêutica desses textos, mas também lidar com questões difíceis. Por exemplo: se alguém perder a salvação, como pode obtê-la novamente? A resposta a essa pergunta geralmente envolve alguma obra Iigada ao abandono do pecado. Assim, o que o crente deve fazer para restaurar sua comunhão com Deus, se torna uma obra pessoal para restaurar sua salvação diante de Deus. No final das contas, a “segunda salvação” acaba sendo pela fé somada a uma medida que a pessoa toma para ser readmitida na igreja.
Outro problema diz respeito à segurança e à paz interior do crente. Se a salvação pode nos escorrer por entre os dedos, quando poderemos, de fato, descansar na redenção que há em Cristo? Quando poderemos saber que tudo está realmente “OK” entre nós e Deus? Ora, todos nós pecamos todos os dias! Como podemos saber se “ainda” estamos salvos? Sim, pois se a salvação se perde por causa do pecado pessoal do crente, quantos pecados bastariam para perdermos nossa herança? Um seria suficiente? Ou seriam necessários dez? E quanto tempo teríamos de permanecer nesses pecados para deixarmos de ser filhos de Deus? Um dia, um mês, um ano? E mais: quais pecados seriam mais eficazes em fazer com que percamos a salvação? Seria necessário adulterar, roubar e matar ou uma fofoca é suficiente para que sejamos condenados novamente ao inferno? Precisamos saber essas coisas para não ultrapassar os limites!
Ora, uma vida vivida nesse suspense está muito longe daquela realidade de paz, descanso e segurança que aBíblia promete aos crentes em Jesus (Jo 14.1-3; Rm 5.1-2; 2Tm 1.12; 4.8).
Conclusão
Eis aí as cinco tocantes verdades da Tulipa. São verdades que serão acolhidas por todos os que colocam asEscrituras acima das percepções e juízos pessoais; verdades que geram assombro e que, com frequência, levantam questões muitas vezes sem resposta; verdades que os servos de Deus aceitam pela fé, mesmo sem entendê-las plenamente, sabendo que a mente de Deus está muito acima da deles (Rm 11.33-36).
Além de sua grandeza e dos mistérios que encerram, o que mais torna essas verdades bíblicas tão importantes? Em outras palavras: por que lutar tanto por elas? Que diferença fazem, afinal? A resposta a essas questões não é difícil e partes dela já foram mencionadas ao longo desta exposição. De fato, conforme destacado anteriormente, as cinco verdades da flor produzem certos efeitos piedosos, tais como gratidão (pela salvação concedida sem mérito algum), humildade (por saber que em nós, antes de sermos alcançados, só havia depravação) e dependência (decorrente da certeza de que só por causa da ação dele é que somos salvos e nos mantemos em seus caminhos). Ora, gratidão, humildade e dependência são os três maiores pilares da espiritualidade cristã e nada fortalece mais essas colunas do que as tocantes verdades da flor.
Efeitos práticos também decorrem da Tulipa. Eu já os mencionei em parte na primeira seção deste texto, mas quero frisá-los novamente nesta conclusão. Notem: o servo de Cristo que adota a Tulipa abandonará as técnicas humanas de convencimento no trabalho evangelístico; deixará de perder tempo com os insistentes apelos à conversão que enfastiam os crentes ao final de cada sermão de domingo à noite; dará ênfase à pregação da Palavra e à oração como instrumentos do Espírito para a atração dos perdidos em vez domarketing secular e da promoção de eventos na igreja; não se sentirá frustrado nem com seu valor pessoal ameaçado quando pregar e ninguém se converter, pois saberá que isso depende exclusivamente da ação de Deus e não das “habilidades” do pregador; e jamais se sentirá orgulhoso quando conduzir pessoas a Cristo, sabendo que, se isso ocorrer, a causa estará em Deus somente e não em suas aptidões ou preparo.
É assim (entre outras coisas) que os cinco pontos do calvinismo edificam e protegem os crentes, os ministros e as igrejas. Com base neles é que se constrói uma vida de serviço vibrante e realizador a Cristo, além de uma comunidade de fé madura que compreende a dimensão infinita da graça salvadora e, dessa forma, se sente verdadeiramente alegre e grata por sua redenção.
Pr. Marcos Granconato
Soli Deo gloria
Fonte: Site da Igreja Batista Redenção