Já presenciei diversas situações em que tentativas de exercer a
disciplina em pastores e líderes que cometeram faltas em público,
abertamente, do conhecimento de todos, foram engavetadas sob a alegação
de que os denunciantes ou queixosos não cumpriram antes o que Jesus
preceitua em Mateus 18:15, "Se teu irmão pecar contra ti, vai argüi-lo
entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão."
Todavia, esses passos iniciais que Jesus estabeleceu em Mateus 18 têm a
ver com irmãos faltosos que pecaram "contra nós" (Mat 18:15-17). Em
vários manuscritos gregos antigos a expressão “contra ti” não aparece, o
que tem levado estudiosos a concluir que se trata de uma inserção
posterior de um escriba. Todavia, existem vários argumentos em favor da
sua autenticidade. Primeiro, mais adiante no texto, tratando ainda do
mesmo assunto, Pedro pergunta a Jesus: “Senhor, até quantas vezes meu
irmão pecará contra mim, que eu lhe perdoe?” (Mat 18:21). A
pergunta de Pedro reflete o entendimento que ele teve das instruções de
Jesus quanto ao pecado de um irmão contra ele. Segundo, a expressão
“contra ti” aparece na maioria dos manuscritos, ainda que mais recentes.
Terceiro, a omissão da expressão nos manuscritos mais antigos pode se
explicar pela ação deliberada de um escriba que quis generalizar o
alcance das instruções. Por esses motivos, consideramos a expressão como
tendo sido originalmente pronunciada por Jesus.
Notemos, portanto, que em Mateus 18 o Senhor não tem em mente os pecados
públicos cometidos contra a Igreja de Cristo. O Senhor está tratando do
caso em que um irmão pecar "contra mim". Num certo sentido, todos os
pecados que um irmão comete acabam sendo contra mim, pois sou membro da
Igreja que ele ofendeu. Mas, existem ofensas e faltas que me atingem de
forma direta, como indivíduo. É disso que Mateus 18 trata.
Portanto, há que se distinguir duas situações gerais que precisam ser
tratadas de forma diferente: aqueles pecados que foram cometidos
abertamente e que são do conhecimento público, e aqueles outros que
foram cometidos diretamente contra uma pessoa, e que ainda não são do
conhecimento público. Os primeiros, os tais pecados abertos e públicos,
devem ser tratados imediatamente pela Igreja, e não por indivíduos em
conversas privadas. Os segundo, estes sim, exigem o tratamento que Jesus
ensina em Mateus 18. Evidentemente, há pecados que se encaixam nas duas
categorias e nem sempre é possível distinguir com facilidade o caminho a
seguir.
De acordo com Calvino, os pecados abertos e públicos devem ser tratados
sem demora pelos conselhos das igrejas, para que os bons membros não
sofram uma tentação a mais ao pecado ocasionada pela demora. Calvino
apela como prova para a repreensão pública imediata que Paulo fez a
Pedro, conforme Gálatas 2:11,14. Paulo não esperou para falar em
particular a Pedro. Como o pecado de Pedro, que era a hipocrisia, foi
cometido abertamente, Paulo passa a repreendê-lo abertamente, sem
demora.
Paulo também orienta Timóteo a disciplinar publicamente aqueles que
vivem no pecado: “Quanto aos que vivem no pecado, repreende-os na
presença de todos, para que também os demais temam” (1Tim 5:20). Não há
aqui nenhuma menção da necessidade de procurar esses faltosos em
particular uma ou duas vezes, mas apenas a necessidade de se estabelecer
o fato pelo depoimento de testemunhas.
Quando Paulo tratou do caso do imoral de Corinto, um caso que era
público, notório e do conhecimento de todos (cf. 1Cor 5:1), pediu a
imediata exclusão do malfeitor (1Cor 5:13), lamentando que isso ainda
não tivesse acontecido. Quando Ananias e Safira pecaram, mentindo
abertamente sobre o valor das propriedades vendidas, ao trazerem diante
dos apóstolos a sua oferta, foram disciplinados imediatamente por Pedro,
sem que houvesse quaisquer encontros particulares anteriores com eles
(At 5:1-11).
As exortações de Paulo para que nos afastemos dos que ensinam falsas
doutrinas (Rom 16:17), para que se admoestem os insubmissos (1Tes 5:14),
para que nos apartemos dos desordeiros (2Tes 3:6), para que fujamos e
nos separemos dos falsos mestres (2Cor 6:17; 2Tim 3:5) sugerem ação
disciplinar exercida pela Igreja sobre membros da comunidades que
notoriamente são insubmissos, desordeiros, divisivos, falsos
doutrinadores. O apóstolo traz uma lista complementar em 1Coríntios:
"Mas, agora, vos escrevo que não vos associeis com alguém que,
dizendo-se irmão, for impuro, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente,
ou beberrão, ou roubador; com esse tal, nem ainda comais" (1Cor 5:11).
No caso de Himeneu e Alexandre, dois notórios blasfemadores e
divulgadores de falsas doutrinas, Paulo os entrega diretamente a Satanás
(1Tim 1:20).
Essas evidências levam à conclusão de que, no caso de irmãos que vivem
notoriamente em pecado e que cometeram esses pecados abertamente,
publicamente, não existe a necessidade de exortação particular e
individual antes de se iniciar o processo disciplinar pela Igreja.
Aqui cabe mais uma vez citar o pensamento de Calvino, ao comentar Mateus
18:15. O Reformador mais uma vez distingue entre pecados abertos e
secretos e exclama: "Certamente seria um absurdo se aquele que cometeu
uma ofensa pública, cuja desgraça é conhecida de todos, seja admoestado
por indivíduos; pois se mil pessoas tiverem conhecimento dela, ele
deveria receber mil admoestações".
Isso não significa negar aos faltosos o direito de se defender e de se
explicar. O pleno direito de defesa sempre deve ser garantido a todos.
Todavia, eles exercerão esse direito já diante da Igreja, e não diante
de um irmão em particular, de maneira informal.
A determinação de Paulo a Tito, para que ele se afaste do homem faccioso
após adverti-lo duas vezes (Tit 3:10-11), pode parecer militar contra o
que estamos dizendo acerca do tratamento de pecados públicos. Todavia, é
provável que as duas advertências que Paulo menciona já sejam públicas e
abertas, pois se trata de homem faccioso, isso é, que promove divisões
na igreja pelo ensino de falsas doutrinas. Se as mesmas não surtem
efeito, como disciplina preliminar, a exclusão (implícita no mandamento
para separar-se) é o passo definitivo e final.
Infelizmente, pela falta de distinção entre pecados públicos e pessoais,
concílios e igrejas apelam para o não cumprimento de Mateus 18 em casos
de denúncias feitas contra seus pastores, para travar
administrativamente processos disciplinares contra os mesmos. Presenciei
diversos casos de denúncias feitas contra pastores que haviam cometido
faltas notórias e que foram arquivadas por seus concílios sob a alegação
de que os passos de Mateus 18 não haviam sido cumpridos. Todavia, não
se tratavam de faltas cometidas contra irmãos específicos, mas de erros
públicos, notórios, que afetavam a Igreja de Cristo como um todo.
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