No domingo em que ressuscitou, o Senhor Jesus apareceu à tarde aos discípulos, que estavam trancados com medo dos judeus (João 20.19-20). Todos estavam presentes na casa, menos Tomé. Após saudá-los e mostrar-lhes as mãos e o lado, o Senhor assoprou e disse-lhes: “Recebei o Espírito Santo” (Jo 20.22). Este dito é considerado difícil porque sugere que os discípulos receberam o Espírito Santo antes de Pentecostes e antes de Jesus ter sido glorificado, criando os seguintes problemas:
1. Como Jesus pôde conceder o Espírito antes de ser glorificado, quando Ele mesmo havia dito que o Espírito só poderia vir após a Sua glorificação? Confira estas passagens:
Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espírito até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado (Jo 7.39);
Mas eu vos digo a verdade: convém-vos que eu vá, porque, se eu não for, o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei (Jo 16.7).
2. Os discípulos receberam o Espírito duas vezes, uma antes da exaltação de Cristo e outra após a mesma, no dia de Pentecostes? De acordo com o livro de Atos, os discípulos receberam o Espírito após Jesus ter subido aos céus, ter sido exaltado à direita do Pai, e derramado o Espírito no dia de Pentecostes (veja Atos 2.1-4 e 2.33). A frase de Jesus “recebei o Espírito” (Jo 20.22) parece sugerir que houve um outro momento, antes de Pentecostes, em que Jesus deu o Espírito aos discípulos.
Vejamos as principais tentativas de explicação para este dito difícil de Jesus.
1. O apóstolo João escreveu uma versão estilizada do dia de PentecostesEsta primeira explicação defende que o apóstolo João descreveu o dia de Pentecostes de forma estilizada e simbólica, como sendo Jesus assoprando o Espírito sobre os discípulos. O fato nunca realmente teria acontecido. É apenas uma descrição simbólica do que aconteceu em Pentecostes. Após narrar a ressurreição do Senhor, João menciona a Grande Comissão (“Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio”) e simbolicamente descreve o dia de Pentecostes como sendo o assopro de Jesus sobre os discípulos.
Colocando de uma maneira ainda mais clara: de acordo com esta interpretação, os eventos narrados por João em 20.19-23 nunca aconteceram realmente. Esta passagem seria uma descrição figurada do dia de Pentecostes, que João elaborou de acordo com seu estilo altamente simbólico. Portanto, houve apenas um Pentecostes e apenas um momento em que os discípulos receberam o Espírito. O que temos no Evangelho de João é a versão estilizada deste evento. João 20.22 corresponde a Atos 2.1-4.
Há vários problemas com esta interpretação. (1) Ela não corresponde exatamente aos eventos acontecidos em Pentecostes, pois após terem recebido o Espírito, os discípulos não saíram para evangelizar e nem mesmo foram capazes de convencer Tomé (veja João 20.24-25); (2) Tomé não estava presente e isto quer dizer que ele não recebeu o Espírito; (3) A maior dificuldade é que esta interpretação lança dúvidas sobre a historicidade dos eventos narrados por João em seu Evangelho. Se a narrativa que estamos analisando é simbólica, segue-se que as demais narrativas em João também podem ser simbólicas. E quem vai nos dizer quais são e quais não são? Porém, percebe-se claramente que João relata eventos em seu Evangelho como sendo históricos, e não como sendo eventos que simbolizam outros eventos. Esta interpretação, portanto, deve ser rejeitada.
2. Os discípulos receberam o Espírito duas vezes
Essa segunda interpretação percebe a diferença que há entre o evento narrado em João 20.22 e o relato do dia de Pentecostes em Atos 2.1-4, e por considerar ambos como históricos, conclui que se trata de dois fatos distintos. Ou seja, no dia em que ressuscitou e apareceu aos apóstolos, Jesus lhes deu o Espírito pela primeira vez. Após ter sido exaltado, deu-lhes o Espírito pela segunda vez, no dia de Pentecostes. No primeiro caso, foi para fortalecimento e preparação para a vinda completa e plena do Espírito no dia de Pentecostes. Alguns, como Martyn Lloyd-Jones, sugerem que na primeira vez Jesus deu o Espírito para formar a Igreja, e que na segunda, em Pentecostes, deu o Espírito como poder para testemunhar.
Muita embora esta interpretação seja melhor do que a primeira por considerar a historicidade e realidade do relato de João, ela ainda deixa a desejar em alguns aspectos, o mais importante sendo o fato de que acarreta três recebimentos distintos do Espírito Santo por parte dos discípulos. Entendemos que o Espírito Santo agia nos crentes antes de Pentecostes exatamente da mesma forma como agia nos crentes que viveram após Pentecostes, isto é, regenerando-os e habitando neles. De que outra forma eles poderiam crer e ser santificados? Os discípulos eram crentes antes de Jesus morrer e ressuscitar. O próprio Senhor reconheceu que Pedro havia crido nEle, por revelação de Deus (Mt 16.17), que os discípulos já estavam limpos (Jo 15.3). Portanto, os discípulos eram crentes e tinham o Espírito. Se a interpretação de João 20.22 que estamos analisando é correta, significa que eles receberam o Espírito três vezes: ao serem convertidos durante o ministério terreno de Jesus, no dia da ressurreição de Cristo na sala trancada, e finalmente no dia de Pentecostes.
Essa multiplicidade de recebimentos do Espírito – coisa que nos parece bastante estranha ao Novo Testamento – tornam esta interpretação inaceitável.
3. Jesus fez apenas uma promessa
De acordo com esta interpretação, o Senhor Jesus apenas reforçou a promessa da vinda do Espírito, a qual se deu no dia de Pentecostes. Apesar dEle ter dito “recebei o Espírito”, os apóstolos só receberam de fato no dia de Pentecostes. A expressão no imperativo (“recebei”) foi para indicar a certeza de que eles haveriam de receber o Espírito: era tão certo que já poderiam considerar com algo acontecido. Em outras palavras, João 20.22 é a versão de João, não de Pentecostes, mas daquelas ocasiões em que o Senhor ressurreto prometeu aos discípulos que haveriam de receber o Espírito, veja Atos 1.4-5 e 8.
Jesus soprou e nada parece ter acontecido, pela razão simples de que era uma promessa, a qual cumpriu-se em Pentecostes. Essa é a interpretação que preferimos.
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