[Aviso: texto teologicamente denso que pressupõe que o leitor sabe procurar na Bíblia as referências, rsrsrs]
A prosperidade financeira obedece a normas, regras e métodos
estabelecidos. Por outro lado, da perspectiva bíblica, a prosperidade é
um dom de Deus. É ele quem concede saúde, oportunidades, inteligência, e
tudo o mais que é necessário para o sucesso financeiro. E isso, sem
distinção de pessoas quanto ao que crêem e quanto ao que contribuem
financeiramente para as comunidades às quais pertencem. Deus faz com que
a chuva caia e o sol nasça para todos, justos e injustos, crentes e
descrentes, conforme Jesus ensinou (Mateus 5:45). Não é possível, de
acordo com a tradição reformada, estabelecer uma relação constante de
causa e efeito entre contribuições, pagamento de dízimos e ofertas e
mesmo a religiosidade, com a prosperidade financeira. Várias passagens
da Bíblia ensinam os crentes a não terem inveja dos ímpios que
prosperam, pois cedo ou tarde haverão de ser punidos por suas
impiedades, aqui ou no mundo vindouro.
Através dos séculos, as
religiões vêm pregando que existe uma relação entre Deus e a
prosperidade material das pessoas. No Antigo Oriente, as religiões
consideradas pagãs estabeleceram milênios atrás um sistema de culto às
suas divindades que se baseava nos ciclos das estações do ano, na busca
do favor dessas divindades mediante sacrifícios de vários tipos e na
manifestação da aceitação divina mediante as chuvas e as vitórias nas
guerras. A prosperidade da nação e dos indivíduos era vista como favor
dos deuses, favor esse que era obtido por meio dos sacrifícios,
inclusive humanos, como os oferecidos ao deus Moloque. No Egito antigo a
divindade e poder de Faraó eram mensurados pelas cheias do Nilo. As
religiões gregas, da mesma forma, associavam a prosperidade material ao
favor dos deuses, embora estes fossem caprichosos e imprevisíveis. As
oferendas e sacrifícios lhes eram oferecidas em templos espalhados pelas
principais cidades espalhadas pela bacia do Mediterrâneo, onde também
haviam templos erigidos ao imperador romano, cultuado como deus.
A religião dos judeus no período antes de Cristo, baseada no Antigo
Testamento, também incluía essa relação entre a ação divina e a
prosperidade de Israel. Tal relação era entendida como um dos termos da
aliança entre Deus e Abraão e sua descendência. Na aliança, Deus
prometia, entre outras coisas, abençoar a nação e seus indivíduos com
colheitas abundantes, ausência de pragas, chuvas no tempo certo, saúde e
vitória contra os inimigos. Essas coisas eram vistas como alguns dos
sinais e evidências do favor de Deus e como testes da dependência dele.
Todavia, elas eram condicionadas à obediência e só viriam caso Israel
andasse nos seus mandamentos, preceitos, leis e estatutos. Estes
incluíam a entrega de sacrifícios de animais e ofertas de vários tipos, a
fidelidade exclusiva a Deus como único Deus verdadeiro, uma vida moral
de acordo com os padrões revelados e a prática do amor ao próximo. A
falha em cumprir com os termos da aliança acarretava a suspensão dessas
bênçãos. Contudo, a inclusão na aliança, o favor de Deus e a concessão
das bênçãos não eram vistos como meritórios, mas como favor gracioso de
Deus que soberanamente havia escolhido Israel como seu povo especial.
O Cristianismo, mesmo se entendendo como a extensão dessa aliança de
Deus com Abraão, o pai da fé, deu outro enfoque ao papel da prosperidade
na relação com Deus. Para os primeiros cristãos, a evidência do favor
de Deus não eram necessariamente as bênçãos materiais, mas a capacidade
de crer em Jesus de Nazaré como o Cristo, a mudança do coração e da
vida, a certeza de que haviam sido perdoados de seus pecados, o
privilégio de participar da Igreja e, acima de tudo, o dom do Espírito
Santo, enviado pelo próprio Deus ao coração dos que criam. A exultação
com as realidades espirituais da nova era que raiou com a vinda de
Cristo e a esperança apocalíptica do mundo vindouro fizeram recuar para
os bastidores o foco na felicidade terrena temporal, trazida pelas
riquezas e pela prosperidade, até porque o próprio Jesus era pobre, bem
como os seus apóstolos e os primeiros cristãos, constituídos na maior
parte de órfãos, viúvas, soldados, diaristas, pequenos comerciantes e
lavradores. Havia exceções, mas poucas. Os primeiros cristãos, seguindo o
ensino de Jesus, se viam como peregrinos e forasteiros nesse mundo. O
foco era nos tesouros do céu.
A Idade Média viu a cristandade
passar por uma mudança nesse ponto (e em muitos outros). A pobreza quase
virou sacramento, ao se tornar um dos votos dos monges, apesar de Jesus
Cristo e os apóstolos terem condenado o apego às riquezas e não as
riquezas em si. Ao mesmo tempo, e de maneira contraditória, a Igreja
medieval passou a vender por dinheiro as indulgências, os famosos
perdões emitidos pelo papa (como aqueles que fizeram voto de pobreza
poderiam comprá-los?). Aquilo que Jesus e os apóstolos disseram que era
um favor imerecido de Deus, fruto de sua graça, virou objeto de compra.
Milhares de pessoas compraram as indulgências, pensando garantir para si
e para familiares mortos o perdão de Deus para pecados passados,
presentes e futuros.
A Reforma protestante, nascida em reação à
venda das indulgências, entre outras razões, reafirmou o ensino bíblico
de que o homem nada tem e nada pode fazer para obter o favor de Deus.
Ele soberana e graciosamente o concede ao pecador arrependido que crê em
Jesus Cristo, e nele somente. A justificação do pecador é pela fé, sem
obras de justiça, afirmaram Lutero, Calvino, Zwinglio e todos os demais
líderes da Reforma. Diante disso, resgatou-se o conceito de que o favor
de Deus não se pode mensurar pelas dádivas terrenas, mas sim pelo dom do
Espírito e pela fé salvadora, que eram dados somente aos eleitos de
Deus. O trabalho, através do qual vem a prosperidade, passou a ser
visto, particularmente nas obras de Calvino, como tendo caráter
religioso. Acabou-se a separação entre o sagrado e o profano que subjaz
ao conceito de que Deus abençoa materialmente quem lhe agrada
espiritualmente. O calvinismo é, precisamente, a primeira ética cristã
que deu ao trabalho um caráter religioso.
Mais tarde, esse
conceito foi mal compreendido por Max Weber, que traçou sua origem à
doutrina da predestinação como entendida pelos puritanos do século
XVIII. Weber defendeu que os calvinistas viam a prosperidade como prova
da predestinação, de onde extraiu a famosa tese que o calvinismo é o pai
do capitalismo. As conclusões de Weber têm sido habilmente contestadas
por estudiosos capazes, que gostariam que Weber tivesse estudado as
obras de Calvino e não somente os escritos dos puritanos do séc. XVIII.
Atualmente, em nosso país, a idéia de que Deus sempre abençoa
materialmente aqueles que lhe agradam vem sendo levada adiante com
vigor, não pelos calvinistas e reformados em geral, mas pelas igrejas
evangélicas chamadas de neopentecostais, uma segunda geração do
movimento pentecostal que chegou ao Brasil na década de 1900. A mensagem
dos pastores, bispos e “apóstolos” desse movimento é que a prosperidade
financeira e a saúde são a vontade de Deus para todo aquele que for
fiel e dedicado à Igreja e que sacrificar-se para dar dízimos e ofertas.
Correspondentemente, os que são infiéis nos dízimos e ofertas
são amaldiçoados com quebra financeira, doenças, problemas e tormentos
da parte de demônios. Na tentativa de obter esses dízimos e ofertas, os
profetas da prosperidade promovem campanhas de arrecadação alimentadas
por versículos bíblicos freqüentemente deslocados de seu contexto
histórico e literário, prometendo prosperidade financeira aos dizimistas
e ameaçando com os castigos divinos os que pouco ou nada contribuem.
O crescimento vertiginoso de igrejas neopentecostais que pregam a
prosperidade só pode ser explicado pela idéia equivocada que o favor de
Deus se mede e se compra pelo dinheiro, pelo gosto que os evangélicos no
Brasil ainda têm por bispos e apóstolos, pela idéia nunca totalmente
erradicada que pastores são mediadores entre Deus e os homens e pelo
misticismo supersticioso da alma brasileira no apego a objetos
considerados sagrados que podem abençoar as pessoas.
Quando
vejo o retorno de grandes massas ditas evangélicas às práticas medievais
de usar no culto a Deus objetos ungidos e consagrados, procurando para
si bispos e apóstolos, imersas em práticas supersticiosas e procurando
obter prosperidade material por meio de pagamento de dízimos e ofertas
me pergunto se, ao final das contas, o neopentecostalismo brasileiro e
sua teologia da prosperidade não são, na verdade, filhos da Igreja
medieval, uma forma de neo-catolicismo tardio que surge e cresce em
nosso país onde até os evangélicos têm alma medieval.
[Aviso: texto teologicamente denso que pressupõe que o leitor sabe procurar na Bíblia as referências, rsrsrs]
A prosperidade financeira obedece a normas, regras e métodos estabelecidos. Por outro lado, da perspectiva bíblica, a prosperidade é um dom de Deus. É ele quem concede saúde, oportunidades, inteligência, e tudo o mais que é necessário para o sucesso financeiro. E isso, sem distinção de pessoas quanto ao que crêem e quanto ao que contribuem financeiramente para as comunidades às quais pertencem. Deus faz com que a chuva caia e o sol nasça para todos, justos e injustos, crentes e descrentes, conforme Jesus ensinou (Mateus 5:45). Não é possível, de acordo com a tradição reformada, estabelecer uma relação constante de causa e efeito entre contribuições, pagamento de dízimos e ofertas e mesmo a religiosidade, com a prosperidade financeira. Várias passagens da Bíblia ensinam os crentes a não terem inveja dos ímpios que prosperam, pois cedo ou tarde haverão de ser punidos por suas impiedades, aqui ou no mundo vindouro.
Através dos séculos, as religiões vêm pregando que existe uma relação entre Deus e a prosperidade material das pessoas. No Antigo Oriente, as religiões consideradas pagãs estabeleceram milênios atrás um sistema de culto às suas divindades que se baseava nos ciclos das estações do ano, na busca do favor dessas divindades mediante sacrifícios de vários tipos e na manifestação da aceitação divina mediante as chuvas e as vitórias nas guerras. A prosperidade da nação e dos indivíduos era vista como favor dos deuses, favor esse que era obtido por meio dos sacrifícios, inclusive humanos, como os oferecidos ao deus Moloque. No Egito antigo a divindade e poder de Faraó eram mensurados pelas cheias do Nilo. As religiões gregas, da mesma forma, associavam a prosperidade material ao favor dos deuses, embora estes fossem caprichosos e imprevisíveis. As oferendas e sacrifícios lhes eram oferecidas em templos espalhados pelas principais cidades espalhadas pela bacia do Mediterrâneo, onde também haviam templos erigidos ao imperador romano, cultuado como deus.
A religião dos judeus no período antes de Cristo, baseada no Antigo Testamento, também incluía essa relação entre a ação divina e a prosperidade de Israel. Tal relação era entendida como um dos termos da aliança entre Deus e Abraão e sua descendência. Na aliança, Deus prometia, entre outras coisas, abençoar a nação e seus indivíduos com colheitas abundantes, ausência de pragas, chuvas no tempo certo, saúde e vitória contra os inimigos. Essas coisas eram vistas como alguns dos sinais e evidências do favor de Deus e como testes da dependência dele.
Todavia, elas eram condicionadas à obediência e só viriam caso Israel andasse nos seus mandamentos, preceitos, leis e estatutos. Estes incluíam a entrega de sacrifícios de animais e ofertas de vários tipos, a fidelidade exclusiva a Deus como único Deus verdadeiro, uma vida moral de acordo com os padrões revelados e a prática do amor ao próximo. A falha em cumprir com os termos da aliança acarretava a suspensão dessas bênçãos. Contudo, a inclusão na aliança, o favor de Deus e a concessão das bênçãos não eram vistos como meritórios, mas como favor gracioso de Deus que soberanamente havia escolhido Israel como seu povo especial.
O Cristianismo, mesmo se entendendo como a extensão dessa aliança de Deus com Abraão, o pai da fé, deu outro enfoque ao papel da prosperidade na relação com Deus. Para os primeiros cristãos, a evidência do favor de Deus não eram necessariamente as bênçãos materiais, mas a capacidade de crer em Jesus de Nazaré como o Cristo, a mudança do coração e da vida, a certeza de que haviam sido perdoados de seus pecados, o privilégio de participar da Igreja e, acima de tudo, o dom do Espírito Santo, enviado pelo próprio Deus ao coração dos que criam. A exultação com as realidades espirituais da nova era que raiou com a vinda de Cristo e a esperança apocalíptica do mundo vindouro fizeram recuar para os bastidores o foco na felicidade terrena temporal, trazida pelas riquezas e pela prosperidade, até porque o próprio Jesus era pobre, bem como os seus apóstolos e os primeiros cristãos, constituídos na maior parte de órfãos, viúvas, soldados, diaristas, pequenos comerciantes e lavradores. Havia exceções, mas poucas. Os primeiros cristãos, seguindo o ensino de Jesus, se viam como peregrinos e forasteiros nesse mundo. O foco era nos tesouros do céu.
A Idade Média viu a cristandade passar por uma mudança nesse ponto (e em muitos outros). A pobreza quase virou sacramento, ao se tornar um dos votos dos monges, apesar de Jesus Cristo e os apóstolos terem condenado o apego às riquezas e não as riquezas em si. Ao mesmo tempo, e de maneira contraditória, a Igreja medieval passou a vender por dinheiro as indulgências, os famosos perdões emitidos pelo papa (como aqueles que fizeram voto de pobreza poderiam comprá-los?). Aquilo que Jesus e os apóstolos disseram que era um favor imerecido de Deus, fruto de sua graça, virou objeto de compra. Milhares de pessoas compraram as indulgências, pensando garantir para si e para familiares mortos o perdão de Deus para pecados passados, presentes e futuros.
A Reforma protestante, nascida em reação à venda das indulgências, entre outras razões, reafirmou o ensino bíblico de que o homem nada tem e nada pode fazer para obter o favor de Deus. Ele soberana e graciosamente o concede ao pecador arrependido que crê em Jesus Cristo, e nele somente. A justificação do pecador é pela fé, sem obras de justiça, afirmaram Lutero, Calvino, Zwinglio e todos os demais líderes da Reforma. Diante disso, resgatou-se o conceito de que o favor de Deus não se pode mensurar pelas dádivas terrenas, mas sim pelo dom do Espírito e pela fé salvadora, que eram dados somente aos eleitos de Deus. O trabalho, através do qual vem a prosperidade, passou a ser visto, particularmente nas obras de Calvino, como tendo caráter religioso. Acabou-se a separação entre o sagrado e o profano que subjaz ao conceito de que Deus abençoa materialmente quem lhe agrada espiritualmente. O calvinismo é, precisamente, a primeira ética cristã que deu ao trabalho um caráter religioso.
Mais tarde, esse conceito foi mal compreendido por Max Weber, que traçou sua origem à doutrina da predestinação como entendida pelos puritanos do século XVIII. Weber defendeu que os calvinistas viam a prosperidade como prova da predestinação, de onde extraiu a famosa tese que o calvinismo é o pai do capitalismo. As conclusões de Weber têm sido habilmente contestadas por estudiosos capazes, que gostariam que Weber tivesse estudado as obras de Calvino e não somente os escritos dos puritanos do séc. XVIII.
Atualmente, em nosso país, a idéia de que Deus sempre abençoa materialmente aqueles que lhe agradam vem sendo levada adiante com vigor, não pelos calvinistas e reformados em geral, mas pelas igrejas evangélicas chamadas de neopentecostais, uma segunda geração do movimento pentecostal que chegou ao Brasil na década de 1900. A mensagem dos pastores, bispos e “apóstolos” desse movimento é que a prosperidade financeira e a saúde são a vontade de Deus para todo aquele que for fiel e dedicado à Igreja e que sacrificar-se para dar dízimos e ofertas.
Correspondentemente, os que são infiéis nos dízimos e ofertas são amaldiçoados com quebra financeira, doenças, problemas e tormentos da parte de demônios. Na tentativa de obter esses dízimos e ofertas, os profetas da prosperidade promovem campanhas de arrecadação alimentadas por versículos bíblicos freqüentemente deslocados de seu contexto histórico e literário, prometendo prosperidade financeira aos dizimistas e ameaçando com os castigos divinos os que pouco ou nada contribuem.
O crescimento vertiginoso de igrejas neopentecostais que pregam a prosperidade só pode ser explicado pela idéia equivocada que o favor de Deus se mede e se compra pelo dinheiro, pelo gosto que os evangélicos no Brasil ainda têm por bispos e apóstolos, pela idéia nunca totalmente erradicada que pastores são mediadores entre Deus e os homens e pelo misticismo supersticioso da alma brasileira no apego a objetos considerados sagrados que podem abençoar as pessoas.
Quando vejo o retorno de grandes massas ditas evangélicas às práticas medievais de usar no culto a Deus objetos ungidos e consagrados, procurando para si bispos e apóstolos, imersas em práticas supersticiosas e procurando obter prosperidade material por meio de pagamento de dízimos e ofertas me pergunto se, ao final das contas, o neopentecostalismo brasileiro e sua teologia da prosperidade não são, na verdade, filhos da Igreja medieval, uma forma de neo-catolicismo tardio que surge e cresce em nosso país onde até os evangélicos têm alma medieval.
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