Quando você morreu?
Michael Allen Rogers escreveu recentemente que morreu em 1957, quando
tinha apenas oito anos de idade. Pessoalmente, já tive algumas
experiências de quase morte, mas apenas morri de verdade em 2006,
durante minha graduação. A experiência é simplesmente sem paralelo. Tudo
que posso dizer é que, desde então, todo ar que respiro tem sido puro,
filtrado pelas palavras de Deus – cansei-me da morte.
Como Rogers, faço referência às palavras de Paulo em Gálatas 2.20:
“logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver
que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e
a si mesmo se entregou por mim”.
Isso não é uma mera metáfora. Se pensarmos assim, minaremos o vigor
da Palavra de Deus[1]. Nós temos de lutar incessantemente contra a
tendência de viver como se as promessas de Deus nas Escrituras fossem
incitações de segunda categoria, quando comparadas aos nossos problemas
mundanos. Se a nossa crucificação com Cristo fosse meramente metafórica,
isso significaria que nós somos primeiramente físicos e secundariamente
espirituais. A Escritura coloca de forma diferente. A verdade é que
somos corpo-espírito portadores da imagem, e a Escritura faz a prevenção
de que não criemos uma dicotomia com essas duas coisas.
Entretanto, parece existir uma hierarquia de relação. A Escritura
coloca bastante peso no coração, nas obras internas da consciência e a
nossa fidelidade com a fé – tudo isso é uma faceta interna e espiritual
do nosso ser (por exemplo, Deuteronômio 6.5 nos fala para amarmos a Deus
com todo nosso coração e com toda a nossa alma; e Jesus ainda adiciona a mente
em Mateus 22.37). O corpo testa e confirma o comportamento da alma,
despojando-a da pretensão. Nossas respostas físicas traem nossa condição
espiritual e desnudam os tesouros de nossos corações (Lucas 6.45).
Embora seja o nosso corpo físico que será ressuscitado, isso só
acontecerá por causa da nossa união, em fé, que temos com Cristo – uma
união espiritual (indicada pelo senso de ”permanecer” em João 15.4,
assim como em Gálatas 2.20; 3.28; Colossenses 1.27; Romanos 8.10; 2
Coríntios 13.5 e Efésios 3.17).
À luz da primazia da alma, nossa crucificação com Cristo não é uma
abstração que se empalidece quando comparada com nossa vida física e
concreta. Nossa morte espiritual não é algo que usamos quando precisamos
de encorajamento. É a morte em primeira ordem – mais duradoura e, nesse
sentido, mais real que a morte física. Então, se você é cristão, você
já possui uma lápide em algum lugar do passado, marcando um lugar muito
mais sagrado do que um punhado de grama. Com uma claridade
inconfundível, o seu epitáfio diz: “Uma vez perdido…”. Por causa dessa
morte, você foi encontrado de uma vez por todas. Por mais estranho que
possa soar, você está gloriosamente morto para o mundo, uma vez que você
está eternamente vivo em Cristo. Essa morte é a que conta: a morte na qual você constrói sua eterna vida em Cristo.
Claro, eu ainda estou morrendo em dois sentidos.
Primeiro, o meu “eu” crucificado, ao qual Paulo se refere como “velho
homem” (Romanos 6.6), se recusa a ficar a sete palmos abaixo do chão.
Ele está morto, mas Satanás o tem usado para tentar atrapalhar meu
progresso em direção a Cristo, e ele está relutante a se render a uma
tão conveniente e efetiva arma. Então, “o velho homem”, nesse sentido,
ainda arranha as paredes sujas da cova e tenta agarrar o calcanhar do
“novo homem”. Ele quer puxar nós dois para as trevas, embora o esforço
seja inútil. Nesse sentido, eu estou morto, mas continuo morrendo.
Trabalhando com o Espírito para manter o velho homem na gelada e úmida
terra do passado. Sua morte será consumada quando minha alma chegar à
presença de Deus após a minha morte física.
Segundo, e o que as pessoas tradicionalmente entendem pela palavra “morte”, eu estou morrendo fisicamente.
Meu corpo está apodrecendo: minhas articulações se desgastam, meus
músculos se atrofiam; minha mente fica menos ágil a cada dia (isso se
ela já esteve ágil algum dia, para começar). Essa é a morte que nós
tendemos a considerar como principal – e por uma boa razão. A morte
física afeta os sentidos; ela acentua a palavra “corpo” em
“portadores de corpo-espírito da imagem de Deus”. Em nossa condição
caída, nossa percepção da realidade foi construída em uma fundação que,
em boa parte, é física. Não é pouca ameaça para nós o desmoronamento
dessa fundação. Por mais que tentemos reforçar nossa crença nas
promessas da Escritura, parece que a morte física será nosso maior teste
de fé, simplesmente porque demanda que nós, ao menos por um tempo,
sacrifiquemos a fundação sobre a qual sempre ficamos, trocando o arenito
dos nossos sentidos pelo granito de Deus prometido em Cristo. Não é uma
tarefa fácil.
Eu senti o gosto dessa dificuldade quando eu era adolescente, ao ver
meu pai morrer em nossa sala de estar. Ele lutou contra um tumor no
cérebro por doze anos. Depois de sua terceira e última cirurgia e do
tratamento com radiação, o tumor cresceu inesperadamente. A década de
longa e árdua batalha com convulsões e fala arrastada foi ocasionalmente
substituída por uma falha total de suas habilidades mecânicas. Seu
corpo ficou dormente. Sua fala desapareceu. Ele ficou deitado na cama e
esperou por duas semanas até que, em uma noite quente, no começo de
junho de 2004, vimos ele dar seus últimos três suspiros – depois de
gemer por duas horas por conta da falha de seu sistema respiratório. Isso é o que faz que nós substituamos a morte espiritual pela física. Isso que faz com mitiguemos a relevância da morte espiritual. Mas isso,
também, é a razão pela qual nós devemos começar a viver com a
consciência de que nossa morte física é apenas uma porta. Girar a
maçaneta da porta da morte pode fazer com que você se arrepie todo, mas o
corredor continua do outro lado. Nem mesmo uma falha do sistema
respiratório pode nos impedir de caminharmos no pátio de Deus.
Tudo isso soa um tanto quanto mórbido, não é verdade? Morto, morrendo
e morrendo? Onde há espaço para esperança? “Bem aqui”, eu diria. A
Esperança do cristão é, de fato, muito estranha, mas, também inatacável.
Nós temos uma incansável esperança na presença da morte física por
causa de um simples princípio: você não pode matar alguém que já está morto. Quando
mantemos nossa crucificação espiritual com Cristo como nosso norte,
podemos começar a nos maravilhar no que Deus fez por nós: o ferrão da
morte foi quebrado na cruz. A porta da morte dará para corredores
maiores para nós, mas, enquanto estivermos na terra, nós teremos o
privilégio de sermos homens mortos-vivos, encarando o físico sem
reservas. Somente quando entendermos isso que a nossa verdadeira
herança, a vida eterna com Cristo, nos trará conforto frente à morte
física.
Três mortes parece algo sombrio para muitos cristãos, mas isso porque
eles têm a morte fora de ordem. A vida deles não é fácil, pois eles
colocam a morte física à frente e consideram a morte espiritual (tanto a
morte inicial do “velho homem” como sua morte final, que está por vir
ao fim de nossa vida física) como um conforto secundário. Na verdade, ao
fazer isso, eles estão vivendo a promessa de Deus de forma superficial.
A benção de Cristo é que a nossa união com a Trindade é restaurada.
Isso nunca mais será quebrado. Ousadia e confiança pertencem àqueles que
meditam nisso diariamente – aqueles que mantêm a morte em ordem.
Se todo esse papo de estar morto e de estar morrendo me faz alguém
mórbido, eu posso viver com isso. Mórbido é pensar que a escuridão é luz
(Mateus 6.22-23). A verdadeira morbidez está nos espiritualmente cegos.
Assim, prefiro a morte à cegueira, desde que eu tenha minhas mortes em
ordem.
—————————————[1] Eu me lembro de uma palestra do Carl Trueman alguns anos depois da morte de meu pai. Eu estava cansado de ouvir sobre o cuidado paternal de Deus quando aquele que eu considerava como a manifestação física do cuidado morreu. Eu fiquei chocado quando Trueman mencionou que esse sentimento – desdém pela metafórica associação de Deus como nosso pai – era inteiramente errôneo. Que Deus é meu pai não é uma metáfora. Pelo contrário, por mais que eu amasse meu pai terreno, ele era apenas um pálido reflexo do meu Pai original (o que expressa o quanto eu amo aquele que me fez, embora esse amor seja, vergonhosamente, não demonstrado). O fato de isso ter sido tão difícil de entender (ainda é) demonstra o tanto que o empirismo pós-iluminista se infiltrou em nosso entendimento da Palavra de Deus, até mesmo no nível popular. Pense da seguinte forma: não é porque percebemos nossos pais terrenos com os nossos sentidos que eles superam o cuidado de Deus. Dentro da cultura ocidental, o empirismo se tornou uma verdade bíblica, e é nossa responsabilidade corrigir esse erro.
Por
Pierce Hibbs Fonte: Reforma 21
Fonte: A PEDRA
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